A caminho da partilha da Síria?

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A Síria ainda existe? Não é uma pergunta retórica. A “antiga” Síria está internamente fracturada e dividida em áreas de influência por potências externas, o que torna difícil imaginar como as “diferentes partes se poderão voltar a fundir numa peça única”. Agora que, com os refugiados e os bombardeamentos russos, a guerra síria volta ao centro do tabuleiro geopolítico, é útil revisitar a questão, mas pelo “lado de dentro”.

Os ocidentais, e sobretudo os media, somaram desde 2011 erros de percepção sobre o que se passava em Damasco. Logo após a eclosão dos primeiros protestos, analistas que conheciam a radical diferença entre o Cairo e Damasco repetiram os avisos sobre o risco de a Síria se vir a fracturar violentamente segundo linhas étnico-religiosas e não em termos de ditadura-democracia. Não foi mais um fracasso das “primaveras árabes”. Foi muito diferente: uma “guerra sectária, de todos contra todos”, que se transformou num conflito regional, entre sunitas e xiitas, pela hegemonia no Médio Oriente, envolvendo também o “grande jogo” entre Washington e Moscovo. “Se a Síria explodir, fará explodir a região”, profetizou em Abril de 2011 o analista turco Mehmet Ali Birand. É uma tragédia que já terá feito mais de 250 mil mortos e milhões de deslocados e refugiados — e não há bons cenários de saída.

O regime sírio, para lá de uma implacável ditadura, representava a hegemonia de uma comunidade minoritária, os alauítas (12% da população), num país esmagadoramente sunita. E, de resto, povoado por outras minorias. Seguiu-se outro erro de percepção, de que muitos líderes árabes partilharam: a certeza de que Assad “cairia dentro de três meses”. Em 2012, o emir do Qatar prometeu ir celebrar em Damasco o fim do Ramadão. Esqueciam uma dimensão: para os alauítas, no poder desde 1963, a rendição é uma questão existencial — não é só a perda dos privilégios mas também o medo de extermínio. Por isso Assad sobreviveu.

O cenário da partilha
Pouco depois, em Maio de 2013, o jornalista Ben Hubbard apontava no New York Times, a existência de três Sírias: “A bandeira negra da jihad flutua em grande parte do Norte. No centro do país, as forças governamentais e os milicianos [xiitas libaneses] do Hezbollah combatem contra os que ameaçam a sua comunidade. No Nordeste os curdos constroem uma zona autónoma ligada aos curdos do Iraque”, visando criar um Estado próprio.

Assad era apoiado pelo Irão e pela Rússia. A rebelião sunita, dominada por bandos jihadistas rivais, era financiada e armada pelos sauditas, pelos emirados e pela Turquia — que passou de amiga a inimiga de Assad. Faltava ainda chegar a “quarta Síria”, o grande terror do Estado Islâmico (EI) e a sua expansão no Iraque.

Grosso modo, o governo de Assad controlará hoje 30% do território, contra mais de 40% dominado pelo EI e 15% pelas outras forças rebeldes. Mas Damasco controla a maioria da população. “Dos 18 milhões de habitantes que ainda vivem na Síria, 12 milhões estão em áreas controladas pelo regime, contra 2 a 2,5 milhões pelo EI, o equivalente por outros grupos islamistas e 1,5 milhões pelos curdos”, escreve o geógrafo francês Fabrice Balache, especialista da Síria.

A fractura da Síria arrastou a disputa entre potências externas pela influência. Segundo o Instituto de Estudos de Segurança Nacional (INSS, israelita), o eixo central do país — de Damasco a Homs e Alepo, tal como a fronteira libanesa — está sob influência iraniana. O Nordeste está sob domínio curdo, cuja influência é duramente disputada pela Turquia. Israel vigia o Sueste sírio e o Sul do Líbano. Nas áreas ocupadas por vários grupos jihadistas, a Arábia Saudita e os emirados exercem a sua influência. 

É neste quadro que a Rússia joga. Tem na Síria a sua única base naval no Médio Oriente, Tartus. Teme que a desintegração do país leve à sua perda de influência. Mas se os alauítas acabarem a apostar numa partilha do país, Moscovo apoiaria o seu intento de conservar a “Síria útil”, ou seja, a costa mediterrânica, incluindo Damasco, Homs e Latakia, coração do “país alauíta”. É também interesse vital do Irão manter o acesso ao Líbano.

O exército de Assad tem acumulado derrotas, sofre de falta de homens, de “fadiga” e deserções. Nos últimos meses, a hipótese de uma ofensiva jihadista sobre Damasco deixou de ser uma fantasia. Um dos grupos rebeldes, Jaysh al-Islam, financiado pelos sauditas, ocupou posições nos arredores da capital.
O grande obstáculo a um acordo é que as várias potências envolvidas no conflito têm interesses contraditórios entre si. O Irão continua a ser o inimigo principal para sauditas.

Frisa o analista libanês Bachir El Khoury que o destino da Síria oscila entre a resolução do conflito e a partilha do território, de facto ou negociada, de modo a parar a tragédia. “Penso que estamos a caminho de uma partilha da Síria”, escreve Balache. “Organiza-se um plano de paz, constata-se que não há reconciliação possível e, por fim, esgotadas todas as soluções diplomáticas, passa-se a uma partilha de facto do país, cada campo mantendo as posições adquiridas.” 

Uma partilha poderá não desagradar a Assad e aos jihadistas. Mas como aceitar um reconhecimento do “califado” do EI? É uma “linha vermelha” para a comunidade internacional, dos EUA à Rússia, de Riad ao Cairo. A questão do EI está inexoravelmente no centro da agenda síria. O que faz de novo trazer à cena a inevitabilidade de uma aliança americana “realista” com a Rússia e o Irão para erradicar o “califado”. O “realismo” consiste em contornar a questão de Assad e fazer uma “aliança com um diabo para derrotar outro mais perigoso”.

A jogada russa
Terá sido algo exagerada a valorização da iniciativa russa de lançar bombardeamentos na Síria, numa jogada de antecipação perante os EUA, “explorando o vazio deixado pelo Ocidente” ou a “ambivalência” americana perante Assad. Terá Putin querido reforçar o estatuto de Moscovo, mostrando que é um actor incontornável no Médio Oriente? Ou terá agido, como outras vezes, por razões pessoais e de política interna?

Os primeiros bombardeamentos foram reveladores: não incidiram sobre o EI mas sobre outros grupos rebeldes. A área escolhida revela o intento de proteger Assad e o território por ele dominado. Trata-se de retirar a iniciativa a Washington? Será, inesperadamente, a antecipação de um cenário de partilha? Terá mudado a equação síria? A sua lógica não é ainda clara mas não suscitará a simpatia dos Estados sunitas, como a Arábia Saudita e o Egipto, com quem Moscovo tem, em vão, tentado negociar. 

Uma nota final: este texto é apenas uma chamada de atenção para a infinita complicação da cena síria. O leitor poderá ficar perplexo. Mas perplexo quanto à Síria esteve sempre quem assina esta inconclusiva análise.

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