A amante do sr. director

Na China está em curso um movimento de moralização, mais uma palavra que Xi Jinping foi buscar ao léxico maoísta. Mas o objecto e o propósito dela são, agora, bem diferentes: acabar com o círculo vicioso da corrupção-ostentação.

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O sr. Fan, empresário de muito sucesso na China próspera da década de 1990, conheceu uma mulher, gostou dela e, como já era casado, propôs-lhe ser sua amante. A seguir conheceu outra, depois outra, juntou mais uma... acabou com cinco. A cada uma comprou uma casa e a todas deu uma mesada generosa no valor de 730 euros. Depois havia as compras: malas, óculos de sol, roupa, sempre de marcas caras, daquelas que se diz darem estatuto a uma pessoa.

Mas um dia a crise apanhou-o. Sem poder pagar a todas, decidiu ficar só com uma. Como escolher? O sr. Fan decidiu fazer um concurso. Contratou especialistas e juntou um júri para avaliar as amantes. Entre a equipa, estava o director de uma agência de modelos, mas à vencedora não bastava ser a mais bonita. Teria de ser uma Sanpei xiaojie completa: ter relações sexuais quando ele quisesse, saber cantar e dançar bem e “aguentar” bem o álcool.

Yu, de 29 anos, foi a primeira eliminada. Por fora, ficou desgostosa mas compreensiva e pediu uma última recordação ao sr. Fan, que aceitou dar um derradeiro passeio de carro com esta amante que parecia tão submissa. A meio do percurso, a mulher atirou o carro para uma ravina – Yu estava numa missão suicida, como deixou escrito numa carta onde contava a sua história e a do concurso de amantes, cujo conteúdo foi divulgado pelo Shanghai Daily.

A história do sr. Fan – Yu morreu, o homem sobreviveu, mas ficou arruinado com o divórcio – foi muito comentada na época (o concurso das amantes foi em 2011). Os homens como o sr. Fan terão pensado que tinham de ser mais cuidadosos, depois esqueceram o episódio e voltaram à sua vida de sempre. E às suas amantes.

Como manter uma amante?

Na China moderna e próspera, as amantes tornaram-se uma instituição que está a preocupar a cúpula política. Porque se o sr. Fan era um empresário privado, que enriqueceu quando a China começou, no final dos anos 1970, a abrir-se à economia de mercado, a maior parte dos novos-ricos chineses são os funcionários que, por causa dos cargos que ocupam, têm acesso a grandes quantidades de dinheiro. O dinheiro que esbanjam é roubado ao erário ou conseguido com a venda de influências.

“É muito simples: não é possível manter uma amante com um salário [público] porque uma amante exige um estilo de vida extravagante que implica muito dinheiro”, disse à imprensa estatal Qi Peiwen, membro da Comissão de Disciplina do Partido Comunista Chinês que tenta encontrar uma fórmula para acabar com este comportamento social. “Quando não se tem dinheiro, o que é que se faz? Naturalmente que se usa o poder que se tem e a influência que se tem para consegui-lo.”

Há um par de anos, o Governo chinês deu início a uma campanha para mudar os hábitos frívolos e sexuais dos seus funcionários. Mas a grande campanha de moralização – uma palavra que foi recuperada do léxico de Mao Tsetung – ganhou um novo fôlego quando o Presidente Xi Jinping chegou ao poder, em Março do ano passado.

As amantes, percebeu Xi, são apenas uma das pontas de um problema social grande e com muitas ramificações – no centro desta guerra está o fim da corrupção, que se torna endémica e ameaça a grande potência mundial.

Uma geração frívola

Para os analistas, é a sustentação desse estatuto que está em causa nos comportamentos dos 73 milhões de funcionários do partido – desde dirigentes de empresas estatais a pequenos chefes de aldeia, passando, é claro, pelas chefias intermédias, todos vivem algum tipo de corrupção.

“Os líderes perceberam que noutras sociedades a prosperidade não foi capaz de se suster porque deu origem a uma geração frívola. E querem evitar que esse cenário se repita na China”, explica June Teufel Dreyer, especialista em China na Universidade de Miami (EUA).

O problema, explicam os analistas, é que o comportamento dos funcionários é só mais um reflexo de uma sociedade que, durante 30 anos, cresceu na direcção de valores e comportamentos que podem ser irreversíveis. E se ainda há meia dúzia de anos um funcionário só podia casar se o partido lhe desse autorização, agora é extremamente difícil regular o seu comportamento, sobretudo o da sua vida privada.

Há campanhas contra a pornografia, contra a publicidade aos serviços sexuais, 20 sites de conteúdo sexual foram fechados, entre eles os que promoviam encontros e troca de mulheres, anunciou a comissão governamental para a imprensa e publicidade. O acesso a sites com conteúdos sexuais foi barrado nos computadores oficiais. Só que, diz a professora de Antropologia da Universidade Estadual de Nova Iorque Tiantian Zheng, quase não há quem ligue às regras. O comportamento sexual dos chineses, segundo Tiantian Zheng, que escreveu um livro sobre o tema – The Lives of Sex Workers in Postsocialist China –, está enraizado e mudá-lo é uma tarefa muito complicada.

“Toda a indústria do sexo foi revitalizada nas décadas de 1980 e 90 devido às mudanças económicas no país. Na era de Mao, todas as formas de consumo, incluindo o comércio do sexo, foram estritamente regulamentadas e politizadas. O partido queria anular todas as actividades reaccionárias e o lazer e o prazer caíam nessa categoria”, diz a antropóloga.

A atitude pró-consumo fez reaparecer os bares e clubes, onde se podia beber e dançar e ser servido por mulheres bonitas. Para evitar conotações negativas – ou seja, para não haver ligações ao passado maoísta –, os bares e clubes mudaram de nome, diz Tiantian. Os clubes nocturnos passaram a chamar-se bares de karaoke e os salões de baile passaram a liange ting, lê-se no livro de Tiantian.

“Estes novos clubes nasceram, obviamente, nas zonas mais prósperas da China. E como clientes surgiram os empresários (homens de meia-idade), os funcionários do Governo e os investidores estrangeiros.” Pela noite fora, continuavam as conversas e fechavam negócios, rodeados de mulheres divididas em duas categorias comportamentais: as yingchu (que interagiam socialmente com o cliente) e as guanxi (que tinham relacionamentos com eles). As sanpei xiaojie – o modelo de mulher do sr. Fan quando fez o seu concurso de amantes – eram as mulheres que serviam os clientes de três maneiras: bebiam, dançavam e tinham relações sexuais.

O vício do luxo

No início da década de 90 do século XX, pouco mais de dez anos depois de Deng Xiaoping ter mudado o rumo da economia chinesa, os clubes nocturnos explodiram por toda a China. Em Dalian, na província de Liaoning (Sul), eram 14 mil, diz a antropóloga, cujo livro foi escrito a partir de casos que observou nesta cidade portuária.

Aos poucos, a vida dos clubes foi reproduzida fora deles, dando origem a uma série de fenómenos sociais. Apareceram as “segundas mulheres” – são sobretudo mulheres pobres do interior que vivem, e muitas vezes têm filhos, com homens casados das cidades cujos negócios os levam com frequência para a China rural. Apareceram as amantes – os casos que se vão conhecendo revelam que é frequente os homens mais bem posicionados terem mais do que uma; faz parte das regras não-escritas do universo das amantes que a primeira prenda é uma casa, o que fez surgir os “bairros das amantes”, urbanizações onde vivem várias destas mulheres.

E surgiram, mais recentemente, as “concubinas universitárias” – raparigas a quem um homem rico e mais velho paga os estudos, a casa e a roupa de marca a troco de relações sexuais. Em Abril do ano passado, a polícia de Pequim desmantelou uma “agência de concubinas universitárias” que cobrava 73 mil euros para estabelecer os contactos entre as estudantes e os “patronos”.

“Quem anda a pé por Pequim o que é que vê? Publicidade: compre um Audi, compre um Rolex, tem de comprar na Gucci”, disse aos media estatais Zhou Guanquan, professor de Direito da Universidade de Tsinghua, tentando explicar que o apelo consumista e o vício do luxo degenerou numa série de comportamentos. “São tudo coisas inacessíveis aos cidadãos comuns e, para algumas mulheres, a solução para as terem é tornarem-se concubinas universitárias”, disse Zhou.

No meio de tudo, onde ficam as mulheres legítimas, as esposas? Tiantian Zheng responde: “As actividades sexuais dos maridos são quase sempre conhecidas das mulheres. Os homens sabem que o bem-estar económico das suas esposas depende deles e sentem-se livres para terem o seu próprio código de conduta. Elas aceitam porque têm um nível de vida confortável.” Também elas têm casas confortáveis, fazem compras nas lojas mais desejadas, viajam, frequentam salões de beleza... “Isso só é possível com os lucros dos maridos. Mesmo as que trabalham não conseguem ser independentes ou manter o nível de vida que querem”, considera a antropóloga.

Mas o número de processos judiciais aumentou – há advogados especializados em “segundas mulheres” que levam aos tribunais as queixas das que, ao serem abandonadas, exigem compensações financeiras – devido às queixas destas outras mulheres, expondo os funcionários ao ridículo e também a sua corrupção.

A vingança das amantes

No ano passado, o jornal americano The Washington Post contou o caso de Ji Yingnan, de 26 anos, que pensava que era noiva de Fan Yue, vice-director da Administração Estatal de Arquivos. Mas ele, afinal, era casado.

Quando soube que havia uma mulher legítima, e para se vingar, Ji divulgou online centenas de fotografias e um vídeo dos dois na cama. Na primeira vez que foram às compras juntos, contou ela, gastaram oito mil euros na compra de uma saia, uma mala e um lenço Prada. Um mês depois de se conhecerem, Fan alugou-lhe um apartamento por 1200 euros por mês e gastou 14 mil a mobilá-lo e equipá-lo (lençóis, toalhas, um computador...) “Ele punha dinheiro na minha mala todos os dias”, disse a mulher numa carta que enviou ao Partido Comunista Chinês a fazer queixa do falso noivo.

Fan Yue tentou defender-se. Numa entrevista que deu a um blogger chinês, negou ter gasto 1,2 milhões de euros com a amante – “foi um pouco mais de meio milhão”. “Esta mulher não é boa, é muito gananciosa”, disse. Foi demitido.

“Que tipo de actividade ilícita teria ele na sua sala de arquivos para ganhar tanto dinheiro?”, questionava recentemente o jornalista do The New York Times Thomas Friedman num artigo de opinião intitulado A vingança das amantes. O texto faz um elogio às amantes – quem diria que seriam elas, na sua sede de vingança quando abandonadas, a denunciar os amantes e, por arrasto, os seus esquemas de corrupção?

Os casos abundam. Xu Maiyong, ex-vice-presidente da Câmara de Hangzhou (Zhejiang), foi demitido, julgado e executado por corrupção e fraude. Era conhecido como “Xu dos Milhões” e a imprensa chinesa noticiou que mantinha “dezenas de amantes”. Há precisamente um ano, o ministro dos Transportes, Liu Zhijun, de 58 anos, foi detido por suspeita de ter desviado cerca de 120 milhões de euros, e o departamento de imprensa e propaganda do partido divulgou que tinha 18 amantes. Um funcionário da província de Hubei foi detido em Dezembro de 2012 depois de ter estrangulado a amante grávida de gémeos porque esta lhe exigia 250 mil euros caso ele não se divorciasse para casar com ela.

As amantes, diz Friedman, são apenas a ponta de um icebergue de corrupção que desestabilizará a China. “Porque o comportamento bom ou mau das autoridades chinesas afecta-nos. Se as autoridades não agirem, haverá mais corrupção, o cidadão comum sentir-se-á mais alienado e a estabilidade da China será questionada. E isso é uma má notícia, não só para a China”, mas para todos os países “cujo futuro está entrelaçado com o dela”, diz o jornalista. Por isso, por mais divertida que seja a história do sr. Fan e do seu concurso de amantes, ou do outro Fan cujo vídeo pornográfico circula no YouTube, “não há motivo para rir”.

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