A agonia entre dois sistemas de saúde

O PÚBLICO pergunta a diversas personalidades brasileiras para onde vai o Brasil. Hoje, o tema é a saúde.

O setor de saúde no Brasil continua agonizante e vive ainda o sonho idealizado na sua Constituição de que um Sistema Único de Saúde/SUS traria a solução para todos os brasileiros, ricos ou pobres. Porém, o que se encontra no cotidiano está distante anos-luz deste sonho e a cada dia as decisões são baseadas em uma ideologia política antiquada e totalmente desconectada da necessidade de um país que está entre as dez maiores economia mundiais.

O mercado da saúde, incluindo o setor público e o privado, representa um pouco mais de 9% do produto interno bruto (PIB), sendo responsável por mais de 4,3 milhões de empregos diretos segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); porém, o modelo de financiamento deste sistema não atende às diversas necessidades.

A Constituição prevê um sistema único de saúde, mas na verdade existem dois sistemas bastante distintos: o público e o privado pouco integrados. Apenas como um exemplo: em 2011 o Brasil apresentou um dos menores gastos públicos (considerando as esferas municipal, estadual e federal) com saúde em relação ao PIB, correspondendo a apenas 4,1%, enquanto a despesa per capita no setor público em países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi de 12,6%. Outra comparação interessante no sistema público é o gasto per capita brasileiro de US$465,67 [cerca de 350 euros], enquanto nos países da OCDE é de US$2789,67, mostrando a enorme diferença de financiamento do setor.

A grande característica do financiamento do sistema público de saúde brasileiro atual é a fragmentação, sendo que em cada uma das esferas governamentais os recursos são sempre escassos, ou seja, o investimento não é proporcional ao orçamento.

Há um mês a maior Santa Casa de Misericórdia da América Latina, em São Paulo, fechou o atendimento no pronto socorro por 60 horas, quando foi obrigada a fechar os portões de entrada com cadeado para evitar invasões; isto tudo por absoluta falta de material hospitalar para atender à população. Frente à comoção geral, o governo estadual providenciou uma verba de emergência, permitindo o retorno do atendimento. Isto gerou um grande desgaste em todas as esferas do governo – afinal a grande São Paulo possui 20 milhões de habitantes e o atendimento de pronto socorro para a alta complexidade está baseado em quatro grandes hospitais, sendo um deles o Hospital da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Este tipo de situação não é incomum no sistema público, pois a base do financiamento está completamente furada.

Existem algumas tentativas de emendas na Constituição, como a emenda número 29, onde se estabelece um valor mínimo de 15% da arrecadação dos municípios e de 12% dos estados para serem obrigatoriamente destinadas ao setor de saúde pública, mas não há qualquer definição de qual deverá ser o percentual para o nível federal, gerando novamente distorções no financiamento do setor.

Frente a isto o setor privado cresce. Quarenta e cinco milhões de brasileiros pagam por um plano de saúde privado e passam a ter direito aos dois sistemas, público e privado. Com isto criou-se um fato inusitado para um país que coloca a saúde na sua Constituição como um direito fundamental e universal do cidadão brasileiro e um dever do Estado, configurando exatamente uma inversão do que ocorre nos países da OCDE, onde a média de investimento é de 70% no sistema público e 30% de investimento no privado. Os dois sistemas não estão conectados, não são complementares e nem tão-pouco são integrados; são dois sistemas de saúde que operam em paralelo, criando todas as dificuldades de entendimento e controle administrativo e financeiro possíveis de se imaginar.

No setor privado o cenário também não é otimista, pois o seu financiamento está baseado na quantidade e não na qualidade dos procedimentos médicos realizados, trazendo diversas distorções no atendimento prestado à população. Para tentar melhorar esta situação do setor privado, o Governo brasileiro criou em 2000 um agência reguladora chamada Agência Nacional de Saúde/ANS, destinada a regulamentar o setor privado através de critérios pré-estabelecidos e elevar o nível de atenção à saúde dos seus segurados, mas esta agência do Governo vem trazendo muita insegurança ao mercado.

Existem ainda outros dados importantes evidenciando a necessidade de se olhar a saúde brasileira com preocupação, pois, ao avaliarmos o período entre 2005 e 2012, os leitos hospitalares destinados ao sistema público, ou seja, ao SUS, diminuíram em 12% em todo o território nacional, sendo que no mesmo período os leitos hospitalares destinados ao setor privado aumentaram em 3,3%. A dificuldade de acesso da população brasileira ao sistema público de saúde pode ser vista em número médio de consultas: no sistema público existem 2,7 consultas ao médico por ano; no privado, é o dobro.

A realidade que se observa hoje no Brasil é um sistema público que possui como característica a falta de recursos, investimento e gestão profissional, enquanto o privado possui recursos e investimentos, tem gestão, mas falta um bom modelo assistencial.

Para ajudar a confundir ainda mais este cenário, o atual Governo brasileiro criou uma solução política para o sistema público de saúde, creditando ao profissional médico toda a responsabilidade pelo bom andamento do sistema, e implantou um programa chamado Mais Médicos. Este programa foca-se apenas no médico e esquece toda a complexidade do sistema de saúde que exige condições adequadas para se exercer a medicina. Passou a fazer convênios através da Organização Pan-americana de Saúde/OPAS, com diversos países, mas principalmente Cuba. Tudo isto não teria problema, se a comprovação de capacitação em medicina fosse exigida conforme estabelece a lei, ou seja, todo médico formado em outro país pode exercer a medicina no Brasil desde que se submeta a uma prova, nos mesmos moldes de diversos países do mundo ocidental. Por questões eminentemente políticas, o atual Governo atropelou esta exigência e hoje não temos a absoluta certeza de que estas pessoas são mesmo médicos. Os resultados desta empreitada política ainda são duvidosos e num ano eleitoral como 2014 cada um lê os dados conforme lhe convém.

O futuro do sistema de saúde brasileiro deve tomar os mesmos caminhos do sistema de educação: uma verdadeira bagunça. Deverá se manter os dois: um público, sujeito a todas as ingerências políticas e com grande dificuldade de resolutividade, e outro bastante distinto, que seria o privado, crescendo cada vez mais, movimentando uma grande quantidade de dinheiro – porém, acessível apenas para quem pode pagar.

Diretor de Saúde da empresa Arcadis Logos, gestor de sistemas de saúde. O artigo foi escrito em português do Brasil

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