Solução da CEDEAO na Guiné-Bissau "pode ter surpresas desagradáveis"

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Carla Rosado

Secretário da CPLP entende que com golpe "voltámos à situação em que se mistura problema militar com político". E que, para entrar, a Guiné Equatorial tem de mudar

A solução que a CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental) aceitou após o golpe militar de Abril em Bissau - um governo de transição até novas eleições - é um caminho "muito escorregadio e pode ter surpresas bem desagradáveis". Quem o diz é Domingos Simões Pereira, guineense, que hoje cessa funções como secretário executivo da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), na conferência de chefes de Estado e de Governo, em Maputo.

Ex-ministro, militante do partido do Governo derrubado, o PAIGC, engenheiro, a concluir doutoramento em Ciência Política, acaba um mandato de quatro anos e regressa a Bissau. Diz que não tem planos. Já esteve no país depois de Abril e - numa entrevista centrada no posicionamento da CPLP sobre o golpe e no desejo de a Guiné Equatorial se tornar membro da organização lusófona - declara ter sentido em Bissau as pessoas "verdadeiramente restringidas na sua capacidade de manifestar o que sentiam".

Como vê a situação na Guiné-Bissau, tendo como pano de fundo o golpe de Abril?

O golpe mobiliza as atenções, justificadamente. Infelizmente, a instabilidade vem de trás. É preciso analisar o contexto. Parece que o problema é a relação entre a CPLP e a CEDEAO. Antes de a CPLP e CEDEAO se envolverem já havia um problema. Temos um país pequeno com uma proliferação muito grande de grupos étnicos, cada um com uma identidade muito forte. Adicionamos a isso uma taxa de analfabetismo muito grande e um nível de pobreza bastante acentuado.

Esse é o pano de fundo...

São os factores que influem de forma muito directa na realidade guineense. O problema é que para além disso há actores em espaços que considero desviados dos seus propósitos. Em 1973, quando a Guiné proclama a independência, ninguém percebeu que aqueles que estávamos a proclamar como heróis não sabiam fazer outra coisa se não a guerra. Ninguém os preparou para novos desafios.

É a questão do peso da estrutura militar.

Exactamente. Os militares, pela participação que tiveram na guerra de libertação, consideram que conquistaram uma legitimidade para terem um pronunciamento no destino do país.

Falou na diferente abordagem ao golpe de CPLP e CEDEAO. É uma questão por resolver.

O que está em causa não é a CPLP, é a Guiné. Achamos que a solução que está a ser implementada não só não corresponde às regras internacionalmente estabelecidas como não produz uma verdadeira solução para o problema. A CPLP nunca pretendeu concorrer com a CEDEAO em termos de legitimidade. É a primeira a falar do princípio de subsidiariedade que assiste à CEDEAO. As Nações Unidas delegam competências em domínios de estabilidade e segurança às organizações regionais, como a União Africana. Neste caso é a União Africana que delega à CEDEAO, estrutura sub-regional. O que a CPLP tentou foi alertar os organismos internacionais de que é importante coordenarmos acções, porque os desafios são profundos e a Guiné irá precisar do concurso de todos.

Há uma clara diferença de abordagem entre a CEDEAO, que aceita o golpe como facto consumado, e a CPLP, que só reconhece o governo eleito.

Sim. A CPLP assume essa posição não só por uma questão de princípio. Assume porque considera ter responsabilidades em ajudar a Guiné. E tenta alertar a CEDEAO para o facto de a solução ter demasiadas lacunas e ir dar em derrocada. Se houvesse alguma forma de auscultar o povo e se daí resultasse um sentimento de que estão de acordo com a solução implementada pela CEDEAO, a CPLP estava bem.

Qual é a motivação da CEDEAO?

Os interesses que podem motivar a CEDEAO a nosso ver não são tão neutrais como os que animam a CPLP. Quando se coloca um problema de segurança, de instabilidade político-militar, normalmente está-se mais à vontade com quem não se partilha fronteiras do que com aquele com quem se partilham. Estarão, o povo guineense e os actores políticos nacionais, convencidos de que a intervenção, por exemplo, do Senegal, é exclusivamente no sentido de apoiar a Guiné ou tem alguma preocupação inerente ao próprio Senegal? Não estaremos a assistir a uma intervenção catalogada como de assistência mas que pretende dirimir outros problemas? Eu não estou a dizer que seja isso, estou a dizer que não sei como se responde a isso no caso da CEDEAO, sei como se responde na CPLP: responde-se dizendo que é impensável que haja outro tipo de interesses que não seja assistir a Guiné-Bissau.

A solução em vigor significa que o golpe compensa?

No fundo é a mensagem que estamos a tentar transmitir. O princípio de tolerância zero não é da CPLP, é da União Africana. A União Africana decidiu traduzir numa declaração mais formal um posicionamento internacional de que não se aceitam golpes independentemente das justificações. A CPLP aplaudiu e disse que se revia nesse princípio. Então no primeiro caso que acontece vão já arranjar enquadramentos? Não estamos a julgar a CEDEAO, parece-nos é que o caminho que decidiram percorrer é muito escorregadio e pode ter surpresas bem desagradáveis.

Já esteve na Guiné depois do golpe. Como está a ser vivida a situação?

É difícil descrever, desde logo porque sou guineense e talvez esteja influenciado por uma ou outra coisa menos objectiva. Cheguei e saí com a sensação de se respirar menos liberdade. Achei que as pessoas se sentiam verdadeiramente restringidas na sua capacidade de manifestar o que sentiam. Voltámos a uma situação em que se mistura um problema militar com um problema político. Encontrei uma situação em que os partidos que não alinham no apoio e no aplauso ao golpe tinham de ter muito cuidado para que a estrutura militar não considerasse que aquilo que diziam era dirigido a eles. Isto não só desfigura como tira substância ao exercício político.

Vai regressar a Bissau. Para fazer o quê? O seu futuro pode passar pela política?

Só sei que vou regressar. Nem eu sei para fazer o quê.

Houve alguma abordagem à CPLP por parte do governo saído do golpe?

Recebi um convite de Bissau para uma visita e para abrir canais de diálogo. Levei a informação à reunião de ministros de Negócios Estrangeiros da CPLP [na semana passada], que não consideraram pertinente uma visita minha nesta altura, nesta circunstância.

Outro assunto: Guiné Equatorial. Entra agora na CPLP como membro de pleno direito?

Não. Apresentámos um relatório que mereceu dos ministros a avaliação de que não estariam reunidas todas as condições para transformar o estatuto de observador associado em membro de pleno direito. Os ministros concluíram que neste momento não há condições para passar a outro nível.

O que é que separa a Guiné Equatorial da condição de membro de pleno direito?

Falta convencer a nossa sociedade civil de que se está a criar uma sociedade mais aberta, mais democrática, mais respeitadora dos direitos individuais e civis. O trabalho que se pode e se deve fazer a nível das estruturas oficiais está a acontecer, mas a construção de uma comunidade também passa pelos povos. As estruturas da sociedade civil que acompanham questões como os direitos humanos e outros ainda apontam a Guiné Equatorial como bastante aquém dos indicadores aceitáveis.

Não o disse mas há obstáculos sérios, como a existência de pena de morte. Em matéria de direitos e liberdades há na Guiné Equatorial práticas que não são aceitáveis.

Oiço isso de todo o mundo que fala da Guiné Equatorial. E tenho de acreditar que as pessoas sabem do que estão a falar. Tenho ido à Guiné Equatorial desde 2006/2007. Há muita coisa que constato. Não posso dizer que já constatei isso.

Não é verdade?

Não estou a dizer que não seja. Estou a dizer que não posso confirmar. Para tratar o assunto de forma objectiva, o que propomos é que as instâncias da sociedade civil possam interagir e que aquilo que permite chegar à conclusão de que se está perante uma sociedade aberta e democrática possa ser avaliado na Guiné Equatorial. Doutra forma entramos num corredor em que nos propõem exigir à Guiné Equatorial aquilo que não exijo a nenhum outro país. Não vou dar o exemplo de outro país, dou do meu: posso assegurar, neste momento, que há observância escrupulosa dos direitos humanos na Guiné-Bissau? Não sei. Não quero ir para outros exemplos, mas se a pena de morte fosse uma condição absoluta e objectiva há instâncias da comunidade internacional que iriam perder membros muito importantes. Não me peçam para exigir a um o que não se pode exigir aos demais.

O ministro português Paulo Portas disse que a Guiné Equatorial ainda não fez progressos suficientes. O que falta?

Vou-lhe dizer o que recebemos da parte da Guiné Equatorial e o que é que transmitimos. Ouvimos o que estão a fazer no sentido da incorporação da língua portuguesa no currículo escolar, desde o primário, ao secundário e a outros níveis. Muita gente me diz: isso é uma formalidade. Mas qual é o outro mecanismo que existe para adoptar uma língua? A Guiné Equatorial falou-nos da ideia de criação de centros culturais, da introdução de leitorados de português nas universidades...

São passos de aproximação. O que falta?

Não vou dizer o que falta. Corremos o risco de dizer que se fizessem isso entravam.

Mas foram identificadas as áreas em que é preciso fazer progressos?

Exactamente. Quando ouvimos a descrição do que a Guiné Equatorial pensa fazer, dissemos que, não sendo um requisito formal para a adesão, há dois ou três elementos que devem ter em conta: que na CPLP só há decisão quando todos estão de acordo, por unanimidade; que era importante trabalharem no sentido de convencerem todos de que estariam reunidas as condições para esse efeito. E tomámos a liberdade de partilhar com eles o facto de todos os membros da CPLP subscreverem a resolução das Nações Unidas para uma moratória de abolição de pena de morte. Mais: há uma resolução do Conselho de Ministros de 2003, em Coimbra, que fala dos direitos individuais e civis no espaço da CPLP e afirmámos que uma eventual observância desses princípios ia facilitar a mobilização dos consensos. Mas ninguém me mandatou a colocar isso como precondição.

As decisões têm de ser tomadas por unanimidade...

Basta um país expressar desconforto ou objecção, não há decisão.

Pelo menos Portugal manifestou desconforto e o ministro disse que não está isolado.

Não identifico o posicionamento dos Estados em relação aos assuntos. Não há consenso, não há unanimidade, não há decisão.

Tem havido referências de que Portugal se opõe e de que Brasil e Angola seriam favoráveis. Corresponde à realidade?

Não identificamos como é que os países se posicionam. A Guiné Equatorial tinha uma lista em que, de país a país, identificava quem estava a favor e quem estava contra. É curioso porque os dados que tinham estavam errados. Oiço muita citação em relação a isso que é errada, completamente errada. Só para lhe dar uma ideia, já houve discussões sobre a Guiné Equatorial em que Presidência e Governo de um mesmo país não estavam de acordo.

Portugal é o grande obstáculo à entrada da Guiné Equatorial?

Não. Há mais países. Posso garantir-lhe. Da última vez que se votou essa questão [em 2010, em Luanda], mais do que um país não estavam de acordo.

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