Kirkuk, a amaldiçoada

Foto
Rzgar Talabani, à esquerda, e Irfan Karkukly, ao centro

Almoço principesco num restaurante de estrada a que se chega por ruas tristes. Os militares abrem caminho

a Bem-vindos a Kirkuk, que foi de curdos e depois de árabes, é de turcomanos, cristãos e xiitas. Cidade que é de petróleo e que os curdos querem e os árabes não largam. Bassorá já foi "Veneza", Bagdad é a cidade dos muros, outras foram vértices do Triângulo Sunita, depois do Triângulo da Morte. Mas não há como Kirkuk a somar rótulos: puzzle, "Iraque em miniatura", "bomba-relógio".

Bem-vindos a Kirkuk, cidade disputada e com muito petróleo, em cima da fronteira entre o Iraque e o Outro Iraque, o Curdistão iraquiano, a região semi-autónoma que é independente de facto e onde os curdos são senhores. Bem-vindos a Kirkuk, cidade de petróleo e de lixo, sem luxo, com casebres e ruínas e ainda lixo e depois mais, porque há lixo em todo o lado e ruínas também.

"A cidade mais rica em todo o Iraque é a cidade mais pobre. Não tem serviços, não tem nada", diz Rzgar Talabani, sentado no seu escritório, onde trabalha para a KAR, empresa do sector petrolífero e do gás, que desenha projectos, constrói e explora. Rzgar Talabani é primo de Jalal Talabani, o curdo que é Presidente do Iraque. Ninguém diria de os ver, Jalal rechonchudo, Rzgar osso e óculos escuros, os dois com bigode.

Rzgar Talabani tem razão. Kirkuk não dá ares de rica, mas de miserável. Tão miserável e tão desejada. "O problema de Kirkuk é entre dois governos, Erbil e Bagdad. Curdos, árabes, turcomanos, cristãos, KDP, PUK ... O problema é que temos tudo. Há sedes de todos os partidos. Com a população não há problemas, somos irmãos."

Kirkuk foi arabizada pelo Baas e por Saddam Hussein, que expulsou os curdos. Depois de 2003, os curdos - muitos consideram Kirkuk a capital de um futuro Estado e os curdos são o maior povo sem Estado - tentaram expulsar os árabes. Todos os anos é adiado o referendo sobre o estatuto da cidade porque ninguém se entende quanto ao censo a usar e vem um novo a caminho. Foi a ONU que descreveu Kirkuk como uma bomba-relógio.

O KDP é o Partido Democrático do Curdistão, do primeiro-ministro curdo, Massoud Barzani; o PUK é a União Patriótica do Curdistão, do Presidente Talabani. Já travaram uma guerra civil, agora dividem o poder no Curdistão iraquiano.

"Durante 30 anos, Saddam trouxe árabes. O Governo agora oferece compensação às famílias que voltarem para Sul, antes Saddam deu-lhes dinheiro e cargos para virem para aqui. Algumas famílias ficam porque estão a trabalhar com a Al-Qaeda, com o Baas e com grupos islamistas. O Curdistão está a pagar às famílias para regressarem a Kirkuk, vindas de Erbil e de Suleimanyah", resume Talabani.

Repete que "não há problemas entre as pessoas", mas entre os governos, Bagdad e Erbil, fora Ancara, Damasco, Teerão. Mas não duvida: "Se votarmos, Kirkuk será do Curdistão. O petróleo de Kirkuk é dos árabes e dos curdos. Mas Kirkuk é curda."

Falta tudo

Do escritório de Talabani, quase à entrada da cidade, seguimos para o do governador da província, no centro. O caminho faz-se por entre ruas pobres e lixo. A sede do governo de Kirkuk é grande e feia: entra-se no complexo e há um edifício em ruínas, abandonado, e depois outros, que têm pessoas a mais para o vazio de corredores e espaços abertos.

O escritório de Abdulrahman Mustapha não parece Kirkuk, como o de Talabani, vazio e feio. O do governador é espaçoso e está preenchido. É confortável e acolhedor. Mustapha é governador da província há sete anos, "desde o início do processo de libertação do Iraque". Não gosta da expressão bomba-relógio, mas não desmente pressões. "A nossa província foi destruída pelo anterior regime e tem muitos problemas. Nos últimos anos houve boas mudanças. Mas infelizmente, ainda sofremos. Temos de fornecer serviços às pessoas, falta água, electricidade, saúde, educação..."

Kirkuk é rica mas Saddam deixou-a "completamente destruída". Agora, o orçamento que Bagdad atribui à província "não chega para a desenvolver". O governador curdo e o Governo xiita não se entendem: "Em geral, a relação não é muito boa. Mas todas as províncias sofrem do mesmo." Kirkuk mais do que as outras, porque não votou em 2009, nas eleições para os conselhos de governo das províncias, por não haver acordo quanto ao recenseamento a usar. "Temos menos autoridade. Eu pedi para termos eleições, mas a decisão foi outra. Assim perdemos."

A vontade da maioria

Para Kirkuk não continuar a perder, é preciso o referendo. Não é só por Kirkuk, sublinha, é pelo Iraque. "Há o chamado problema de Kirkuk, a luta de poder entre as autoridades curdas e os governos do Iraque, que dura há muitos anos. A Constituição tem a solução, o referendo."

O governador garante que basta deixar as pessoas de Kirkuk votar. Porque em Kirkuk não há problemas entre comunidades. "Centenas de milhares de curdos foram expulsos. Turcomanos também e cristãos. Depois da libertação tiveram a oportunidade de voltar. Não tentámos trazer curdos de outras províncias, só pessoas daqui. Os árabes que vieram no processo de arabização têm direito a voltar às suas casas, damos-lhes 20 milhões de dinares e terra. Se não, ficam em Kirkuk e têm os mesmos direitos das outras pessoas da província."

Vote-se, então. "As pessoas de Kirkuk têm o direito de decidir o destino da província", diz. Quando o dia chegar, escolherão entre continuar a fazer parte do Iraque, ter uma autonomia especial ou integrar o Curdistão. Mustapha diz acreditar em que as partes aceitarão o resultado, mesmo a Turquia, que teme o fortalecimento da autonomia curda no Iraque. "Temos a nossa soberania, os iraquianos terão de aceitar a nossa decisão, os vizinhos também."

"A maioria vai decidir, nós vamos aceitar, é o sistema democrático", remata. A violência dos últimos anos, na província e na cidade, foi provocada por "terroristas", diz ainda. Mas "agora, a situação é boa, se compararmos com o que era há quatro anos, é muito melhor".

Para continuar a discutir a violência em Kirkuk basta sair deste edifício, contornar uma esquina, percorrer uma rua e entrar noutro.

À porta está Rzgar Talabani: vamos falar com o responsável pela segurança da província, um turcomano, amigo de Talabani, que está mesmo a chegar. Estaciona um jipe com militares, a seguir outro, e sai Irfan Karkukly, com o seu fato e gravata azuis, grande sorriso. Antes da conversa, as apresentações. "Ele é muito bonito, um cavalheiro", diz Rzgar Talabani sobre o amigo, que tem um tom de pele de boneco de cera e quase parece maquilhado.

"No início, tivemos problemas. O novo sistema democrático foi difícil, especialmente em Kirkuk. Saddam tinha provocado muitos problemas", começa por dizer. O primeiro passo, depois de 2003, foi "apagar o Partido Baas de Kirkuk". Entretanto, houve "terrorismo", e ainda há. "Só temos problemas com os terroristas."

As forças que Karkukly comanda já nem precisam dos americanos, que estão de saída do país e há um ano saíram das cidades, mas não de Kirkuk, onde ainda têm uma base militar. "Não preciso dos americanos, as nossas forças estão prontas. Estão bem treinadas e já estão bem equipadas", diz.

Nas forças de segurança há membros de todas as comunidades. Na administração da província também. Uma das secretárias de Karkukly entra no gabinete e ele aproveita - "é cristã". À saída, dirá de outro funcionário que "é curdo".

Karkukly conhece a importância do seu cargo. "A segurança é tudo, é poder construir uma estrada, é poder fazer o que é preciso", diz. Sem ele, nada se faz.

Como muitos iraquianos, árabes, curdos ou turcomanos, foi um combatente. "Estava na oposição e tive de fugir para Suleimaniyah e Dohuk [no Curdistão]. Entre 1985 e 1989 estive preso em Abu Ghraib. Saí, e em 1991 voltei para Kirkuk. Mas tive de voltar a fugir para o Norte. Fui ferido muitas vezes e em 2003 também."

Karkukly, que é também líder de um partido turcomano, é muito simpático e ele e Rzgar Talabani "são como irmãos". O curdo já nos convidara para almoçar, mas Karkukly insiste que lhe cabe a ele fazê-lo. Aceitáramos com uma condição: almoçar num restaurante no meio da cidade, a ver pessoas. Mas isso já não depende de nós.

Sobra tudo

Carros, muitos carros: à frente, um jipe com militares, depois o carro de Karkukly, a seguir o nosso, atrás o jipe de Rzgar Talabani e mais uma pick-up com militares. Há um polícia de bigode a passar numa mota que também se junta à coluna, passa a abri-la e manda parar o trânsito. Será que entre tantos militares há algum árabe?

A caminho do restaurante, cruzamos Kirkuk, a miserável. Depois, Kirkuk começa a desaparecer. Afinal, talvez não tenhamos um almoço num restaurante do centro, no meio das pessoas. Há cada vez mais estrada e menos casas, lixeiras e depois já nem isso. O restaurante Muhsen fica no meio do nada, no alto de uma colina. Sobem-se degraus e passa-se pelo jardim, entra-se e há a sala grande e depois há salas especiais para clientes especiais. A mesa está posta para oito e nela há 12 tipos de entradas, muitos pratinhos de cada. Vão ser precisos dois carrinhos de rodas quando for a altura de trocar os pratos. Iogurte ácido para beber, água e refrigerantes.

"Sou turcomano, ele [Rzgar] é curdo, o dono do restaurante é curdo. Temos muito boas relações", diz Karkukly. O dono vem às vezes até à sala e senta-se por um bocado na mesa. Depois chega o prato principal, que na verdade são nove pratos, todos de carne ou de arroz. Há kebab e galinha recheada e há pratos curdos e outros turcomanos, como kosisham, um tipo de galinha, ou dolma, couve, cebola e tomatinhos recheados de arroz.

Há de tudo e sobra tudo. Para não ficarmos a olhar para o que sobra, mudamos de sala. Agora virá o chá, o café, a gelatina, o gelado de todas as cores e coco ralado por cima, os batidos, os palitos e as pastilhas elásticas. Volta a sobrar de tudo e há tempo para a conversa, já são quatro da tarde e a cidade ficou para trás. Karkukly tem cinco filhos, o mais velho a estudar na Europa. Não mora com nenhum: "Estão em Erbil com a mãe, para não terem de ir para a escola com militares."

Há segurança em Kirkuk, mas nunca fiando. Claro que Karkukly já foi alvo de ameaças e atentados. Aos convidados, explica, trá-los sempre ao Muhsen, que tem boa comida e é seguro. Quem paga a conta, já nas escadas, é Rzgar, primo do Presidente Talabani, que deve ter muitos primos. Kirkuk é segura e "somos todos irmãos", mas agora vamos ser acompanhados pelo polícia na mota e pelos militares de jipe e pick-up até à estrada para Suleimanyah. Até à vista, Kirkuk. Nunca fiando.

Sugerir correcção