"Erros grosseiros" devolvem Amanda Knox à liberdade

Foto
Ao saber que estava livre, a jovem de 24 anos, presa desde os 20, chorou ALESSANDRO BIANCHI/AFP

A procuradoria ainda não esgotou os recursos e a saga vai continuar. Mas a norte-americana dificilmente voltará a sentar-se em tribunal

"Eu não matei." Ao longo do dia, juristas e jornalistas sublinharam que a declaração de inocência de Amanda Knox era apenas uma parte muito pequena do que o júri tinha para analisar. Mas também notaram o impacto dessa declaração nos que a ouviram em tribunal. Foi um discurso emotivo e bem estruturado, num italiano quase perfeito, onde a jovem não se esqueceu de falar da vítima, se disse inocente e tentou apagar a imagem que a acusação construíra de si própria.

Eram quase nove da noite (dez em Itália) quando o tribunal de recurso de Perugia anunciou a absolvição de Amanda Knox e do seu antigo namorado, Raffaele Sollecito, no assassínio e agressão sexual da inglesa Meredith Kercher, anulando a pena de 26 anos de prisão a que a norte-americana tinha sido condenada em 2009.

A irmã de Amanda Knox, Deanna, agradeceu "a coragem" do tribunal, por não ter hesitado em "fazer justiça" e o "apoio [que a família recebeu] de pessoas em todo o mundo". Nas palavras de um dos seus advogados, Carlo Della Vedova, o júri "rectificou um erro". Amanda, disse Vedova à BBC, não disse nada quando ouviu o veredicto: "Só chorou. Ela estava com medo. Sabia que era um dia muito importante, que estava entre a absolvição e o agravamento da pena para prisão perpétua", como pedia a procuradoria.

Cá fora, na praça diante do tribunal, habitantes da cidade pediam "palmas" para a vítima e gritavam "vergonha" e "vamos levar isto ao Supremo". A procuradoria dispõe de dois recursos, mas admite que nunca conseguirá que Knox regresse para novo julgamento, sabendo que conseguir a extradição de um norte-americano nos Estados Unidos é, à partida, impossível.

Ontem, Amanda Knox já não dormiu na prisão de Capanne, onde chegou em Novembro de 2007, dias depois do assassínio da inglesa com quem partilhava casa na cidade onde estavam para um ano lectivo no estrangeiro. Seguiu de carro para Roma e tinha como destino final Seattle.

Não se adivinhava um veredicto fácil, num julgamento em que estava em causa a culpa de Amanda Knox e do seu ex-namorado italiano, mas que era também um julgamento ao próprio processo que terminou em 2009 com veredicto de "culpados" e onde foram admitidas provas que acabaram por se revelar menos conclusivas do que a acusação inicial sugerira.

A procuradoria bem repetiu que as provas não se limitavam ao ADN encontrado na faca considerada a arma do crime, que pertencia a Sollecito e em cuja lâmina tinha sido dado como provado que se encontrava sangue de Knox. Afinal, o sangue eram ténues vestígios de ADN e a faca acabou por ser excluída. Uma reavaliação do material forense por um painel independente descobriu 54 "erros grosseiros" na recolha de provas. E foi isso que os juízes do tribunal de recurso viram.

"Sou a mesma"

O dia começara com as alegações finais e as declarações de inocência dos acusados. À beira das lágrimas, Knox garantiu estar a pagar por um crime que não cometeu e denunciou o retrato feito pela acusação de uma jovem tão "angélica" como "demoníaca", "manipuladora" e capaz "de comportamentos extremos".

"Não sou o que eles dizem que eu sou", afirmou, referindo-se à teoria da procuradoria, segundo a qual ela e Raffaelle assassinaram Meredith porque esta se recusou a participar numa orgia e que Amanda se quereria vingar das críticas da colega ao seu comportamento promíscuo. "Perdi uma amiga, na forma mais inexplicável e brutal possível." E ainda: "Quero voltar para casa. Não quero que a minha vida e o meu futuro me sejam roubados por algo que não fiz, porque eu estou inocente e Raffaele também".

Claudio Pratillo Hellmann, o juiz que presidiu ao processo, e que integrava o júri de oito membros (seis jurados e dois juízes), pediu "respeito e silêncio" no momento em que o veredicto fosse pronunciado. "Lembremo-nos de que uma bela jovem está morta e de que a vida de outros dois jovens está em jogo. Isto não é um jogo de futebol." Um aviso a lembrar como o julgamento deste homicídio brutal, acabou por apaixonar milhares, da cidade universitária italiana a Seattle, de onde é Amanda e onde surgiram clubes de fãs em seu apoio.

Uma vítima inglesa, e uma americana, um italiano e um marfinense como suspeitos, todos jovens, envolvidos num crime com sexo, e onde, segunda a acusação, houve álcool e drogas. Os tablóides deliciaram-se, com os britânicos especialmente empenhados em descrever Knox como "maligna", enquanto os media norte-americanos retratavam o sistema de justiça em Itália como ultrapassado e injusto.

A vítima discreta

A Reuters escrevia ontem que a família de Kercher "manteve um perfil discreto num processo que se transformou numa sensação mediática global, especialmente em contraste com a campanha de relações públicas montada pela família de Knox". "Mez foi quase esquecida nisto tudo", lamentou a irmã de Meredith, Stephanie Kercher, durante a tarde.

No tribunal, enquanto Amanda chorava de alívio, Stephanie chorou de tristeza. Há um homem preso e condenado pela morte de Meredith, Rudy Guede, um traficante de droga da Costa do Marfim, que se sabe ter estado na casa da jovem e ter tido relações sexuais com a vítima. Mas falta-lhe um motivo e, depois de dois julgamentos, as dúvidas são mais do que as certezas. Provavelmente, a família Kercher nunca saberá a verdade.

Sugerir correcção