A grande Europa vista por Jacques Delors e Vaclav Havel

Foi preciso esperar mais de dez anos após a queda do comunismo para que a Europa desse os passos decisivos para a sua reunificação. O antigo dissidente checo, agora chefe de Estado e o antigo presidente da Comissão pensam ambos que a Grande Europa não deve impor a sua civilização mas antes propor um modelo de coexistência e de responsabilidade

Há quase dez anos, em Pari, o senhor fez um discurso sobre a espera e a paciência. Com os preparativos da adesão à União Europeia a entrarem numa fase activa, tem a sensação de que esta longa espera está a chegar ao fim e que a reunificação da Europa está próxima?Vaclav Havel: Na história nada se passa como foi previsto. Por vezes espera-se durante muito tempo. Foi esse o caso antes de este projecto chegar irreversivelmente ao fimJacques Delors:O presidente Havel tinha dito:"Acreditava que o tempo me pertencia. Isso foi um erro," E acrescentava: "Ninguém é dono do tempo." Mas também disse que o tempo da paciência é o da construção. Durante estes anos talvez tivéssemos podido fazer melhor entre o leste e o Ocidente. De qualquer forma, essa paciência leva-nos finalmente a construir juntos uma Europa reunificada. É sem dúvida nenhuma o projecto mais entusiasmante depois da reconciliação entre a Alemanha e a França depois de 1945.V.H.: Talvez seja - nunca se abe - o projecto mais importante da história europeia tal como a podemos perceber. A Europa foi sempre um todo, mas no passado a ordem europeia foi ditada pelos mais poderosos, em prejuízo dos mais pequenos. A União Europeia constitui a primeira tentativa de organização do continente com base na igualdade, no respeito pela identidade do outro, pela verdade. É uma oportunidade histórica.J.D.: O principal desafio, como muitas vezes o disse Vaclac Havel é de natureza ética. Entretanto gostaria de lembrar que nós construímos a Europa por necessidade: por um lado a reconciliação entre as nações que mergulhavam a Europa numa permanente guerra civil; por outro, a adaptação das nossas economias à potência americana. Esta base é vital, embora não seja essencial. Espero que em 2020 os historiadores possam dizer: a Grande Europa conseguiu criar um espaço de paz e de entendimento entre os povos e inventou um sistema que concilia a liberdade (em economia, o mercado) com um mínimo de regulamentação necessária. De tal forma que possamos ser uma matriz exemplar para a aldeia global em que o mundo se irá tornar.V.H.: O mundo tornou-se uma civilização única composta por vários conjuntos que devem cooperar em pé de igualdade. A Europa é um desses conjuntos.Depois da Guerra a Europa teve de se redefinir em relação aos Estados Unidos. Hoje tem de fazer o mesmo face à Rússia, que é uma enorme entidade euro-asiática, à África, etc. No passado a Europa exportou guerras para o mundo inteiro; ela tentava governar continentes e obrigava-os a adaptarem-se à sua civilização. Agora terá, pelo contrário, de ser um exemplo de cooperação e respeito mútuos. Uma ideia-força atravessa a tradição intelectual da Europa, a da responsabilidade pelo mundo Esta ideia pode impor-se sem que a Europa obrigue ninguém a segui-la.J.D. :Comecei por referir a necessidade económica porque a tarefa mais assustadora para um responsável político é a de combinar a força e a generosidade. A generosidade sem a força não vai longe, a menos que se seja um discípulo de Ghandi. E embora esta União Europeia seja bastante imperfeita, não deixa de ser o primeiro fornecedor de ajuda ao desenvolvimento. Portanto, estou inteiramente de acordo consigo: a missão da Europa nunca será a de governar o mundo nem de nele conquistar pela força a representação da felicidade e do bem. È sim, ressuscitar e preojectar as suas melhores tradições espirituais. A questão está em saber como consegui-lo, ou seja, como ultrapassar as bases materiais da Grande Europa.Existe um abismo entre essa visão ética e a vivência quotidiana da Europa. Quando vêem as discussões acesas do Conselho europeu de Nice, o que é que voz deixa tão optimistas em relação a este grande projecto de civilização?V.H.: Eu não sei o que o futuro nos reserva. Não sei se a Europa vai evoluir bem ou mal. Não sei como este planeta vai acabar. Nunca estive optimista, se se entender por isso, a certeza de que tudo vai acabar bem. Nem pessimista. O futuro está em aberto. Há indicadores em todas as direcções. É sempre necessário trabalhar para encorajar a esperança. E eu acho que a situação actual da Europa. Transmite esperança, mesmo depois de Nice. Porque foram tomadas medidas para pôr termo às reticências políticas face ao alargamento.A União Europeia sabe que o alargamento é do seu próprio interesse e de interesse geral e que não se pode adiá-lo indefinidamente.Concretamente...?V.H.: Concretamente, a União Europeia acaba de manifestar a sua solidariedade para com dois cidadãos checos que estão presos em Cuba sem terem cometido nenhum crime. E no entanto, nós ainda não somos membros da EU.J.D.: Poderiam citar-se muitos outros exemplos para mostrar que, tal como eu a sinto a Europa forma uma família. Desse ponto de vista, depois de Nice, menos pessoas se oporão a um preliminar ao alargamento. Em contrapartida, como não ficar desiludido com o resto das conclusões, a ausência de uma visão comum,e com a inadequação do método? Temos dois ou três anos para encontrar formas para um funcionamento mais eficaz, mais simples e mais transparente. Enquanto espero, desejo que os europeus se reencontrem todos os 27 mais frequentemente, e não apenas para falar do capital comunitário, mas para se ouvirem uns aos outros e ouvir o que os países da Europa Central e de leste têm para nos dizer, sobre as suas tradições e as suas experiências.A pedido da França tidas as referências cristãs foram suprimidas da Carta europeia dos direitos funda,mentais. Jacques Delors protestou, bem como outros. Enquanto presidente da República Checa também o lamenta?V.H.: Não sei. Apenas acho que nas condições democráticas e pluralistas em que vivemos não é possível fazer explicitamente referências religiosas num documento tão fundamental. Os valores em si são importantes e os valores essenciais encontram-se na Carta-J.D.: É preciso pôr os pontos nos 'i' Eu nunca disse que a Europa era ou não era cristã. Tal como nunca disse contrariamente ao que outros fizeram, que a Europa será social-democrata ou deixará de ser- A Europa está além dessas definições simplistas. Em contrapartida condenei o facto de se não mencionar nas heranças da Europa a herança religiosa., Porque é um facto histórico.V.H.: A Europa não vai desenvolver-se para lá da Carta e para lá de Nice. Vai ser constituída por um conjunto original, um conjunto de Estados que, para coexistir,m terão, mais cedo ou mais tarde, de necessidade de uma Constituição. Um teto simples, inteligível, graças ao qual todos e cada um possam perceber como ela funciona. Para acabar com a divisão entre o pequeno grupo dos euro-especialistas e a grande massa dos euro-analfabetos.A Carta poderá ser o preâmbulo da futura Constituição. Em primeiro lugar formula-se os valores e depois fala-se as instituições.. Para que toda a gente compreenda bem que as instituições são o fruto dos valores citados em preâmbulo.Tem de convencer Jacques Delors de que a Europa precisa de uma Constituição.V.H. :Fá-lo-ei de boa vontade. Há cerca de um ano pedi aos meus colaboradores os documentos que definem o modo de funcionamento da União. E eles trouxeram-me uma mala com todos os tratados, emendas, acrescentes. Ainda lá está no meu gabinete. Ao examinar estes documentos, compreendi que não se destinavam a uma criança de escola. Representam um trabalho enorme e precioso.Mas daqui a um ou cinco anos vai ser preciso transpor este conjunto de textos para uma lei fundamental compreensível por todos..Claro que há pessoas, que estão mais dentro desta situação do que eu, , como Jacques Delors, por exemplo, que conhece a União por dentro,ao passo que eu a observo de longe.J.D.: Para me manter à defesa antes de atacar, eu devo dizer que os projectos que emanavam da Comissão era bem mais simples que esses que foram adoptados pelos chefes de Estado e de governo, nomeadamente em Maastricht. Acrescentaria que é preferível um bom tratado a uma má Constituição; sempre o disse.Entretanto surgiram bons argumentos a favor de uma Constituição: +por influência do debate sobre a Constituição, os cidadãos europeus poderão ser levados a interessar-se pela Europa. Toda a gente deverá participar. Não apenas os governos, os partidos políticos e os Parlamentos, mas também a sociedade civil, os parceiros sociais, os intelectuais.É preciso decidir em conjunto o que se pretende fazer em conjunto, e segundo que regras se pretende viver em conjunto. Se o debate constitucional abrir uma via para a formação de uma opinião pública europeia, e propuser uma pedagogia da democracia, então estou de acordo. Mas uma Constituição não significa acabar com a Carta e com os actuais tratados.Em que vão transformar-se os Estados-nações de amanhã?J.D.: É preciso ter atenção.No espírito de alguns o aparecimento da Constituição implica o desaparecimento dos Estados.nação. Seria um erro histórico. Devíamos construir uma Federação dos Estados-nações. Eles têm ainda um papel a desempenhar para garantir a coesão social e servir de elo entre a base e o topo.V.H.: É evidente que há que respeitar a soberania e a identidade não apenas de cada nação e de cada Estado, mas também de cada região, de cada grupo de cidadãos, de cada tendência, de cada classe social. Mas creio que há uma certa confusão ideológica e conceptual: por um lado, a Federação não vai abolir os Estados-nações; Por outro, um tratado não é suficiente para reunir Estados por menos de se contentarem com uma espécie de conglomerado. A actual evolução da Europa vai no sentido da formação de uma entidade política original, nem uma Federação no sentido tradicional, nem uma simples aliança. Em 1991, François Mitterand esteve em Praga com a ideia de uma Confederação. Lançada em 1989, essa ideia algo ambígua não vingou. È preciso que os estudiosos da política inventem uma nova categoria.J.D.: Eu lembro-me que você veio ter comigo a Bruxelas porque não estava a ver muito bem o projecto de confederação.E com razão., O projecto foi mal apresentado e em Praga, em 1991. Voltemos ao essencial da ideia apresentada por François Mitterrand: Era preciso rapidamente depois da queda do comunismo, demonstrar que os países que acabavam de sair da escuridão do totalitarismo eram membros da família europeia. Depois, era preciso tempo para adaptar as instituições, as leis, as economias. Pessoalmente lamento que esta ideia sob esta forma não tenha sido posta em prática. Felizmente que em Nice se desbravou caminho para o alargamento, se não, receio bem que os povos que batessem à porta acabassem por se cansar e mesmo por se rebelar contra esta Europa, simultaneamente rica e arrogante.Senhor Presidente, após dez anos de espera à porta da União, não lamenta que a Confederação não tenha nascido em Praga em 1991?V.H.: Quando imagino a Grande Europa de 2010 ou 2015 penso que o termo confederação está mais adequado. Se bem que seja também por vezes impreciso. Porque é que isso não andou para a frente há dez anos? A ideia era interessante, eticamente. Mas não estava suficientemente preparada, não tinha o apoio político indispensável. As novas democracias consideravam-na uma espécie de recurso, como que uma proposta falaciosa para adiar a adesão.Nós pensámos: A Europa rica continuará entre ela e nós, nós seremos relegados para uma confederação para ficarmos tranquilos..*Exclusivo PÚBLICO/ "Le Monde"

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