Cildo Meireles e Manuel Aires Mateus: Um encontro em Serralves

Você vai ao Brasil, não?”, perguntou Cildo Meireles, concluindo uma longa conversa de três horas com o arquitecto português Manuel Aires Mateus – e que só acabou porque não havia mais espaço nos cartões de memória das câmaras.

“Hei-de ir. Digo qualquer coisa.”

“Bom, você vai ter meu endereço. O atelier e a casa são em Botafogo. E se você me avisar com antecedência tem um quarto lá.”

Antes dessa manhã passada no Museu de Serralves, no Porto, onde o artista brasileiro estava a ultimar a montagem da sua exposição – que pode ser visitada até 26 de Janeiro –, Cildo Meireles e Manuel Aires Mateus não se conheciam pessoalmente, nem tinham alguma vez falado um com o outro. Perfeitos desconhecidos – mas as suas obras tinham começado a dialogar antes, quando o arquitecto visitou uma exposição do artista brasileiro na Tate Modern, em Londres, há cinco anos. Uma das instalações, intitulada “Volátil”, consistia numa sala com uma vela solitária a arder ao fundo; para chegar até ela, o visitante era convidado a tirar os sapatos e caminhar sobre um chão coberto de cinza. A experiência de afundar os pés e o efeito de abrandamento foram uma inspiração directa num projecto arquitectónico de Manuel Aires Mateus: uma casa de fim-de-semana na Comporta, na península de Tróia, com chão de areia, prolongando a praia para o interior. Concluído em 2010, o projecto fez parte da representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza nesse ano. E o que começou por ser uma casa privada de fim-de-semana multiplicou-se: hoje existem quatro e formam um resort eco-chic chamado Casas Na Areia.

Casas da Areia: interior e exterior

O projecto representou qualquer coisa de novo na arquitectura de Aires Mateus. É como se, por contaminação, ela se tivesse tornado mais sensorial. A certa altura da sua conversa com Cildo Meireles, ele dirá que “a arquitectura está a tentar afastar-se do aspecto mais imagético e a procurar centrar-se num aspecto mais sensorial. Os sentidos são cinco, não apenas a visão”. Uma das razões – entre muitas – por que o arquitecto admira a obra do artista brasileiro é o facto de ela estar aberta a outras possibilidades de percepção, para além do olhar. A influência de Cildo Meireles no projecto da Comporta é tão assumida que Manuel Aires Mateus diz que quem desenhou a casa com chão de areia foi o brasileiro. É verdade que não se conheciam, mas o encontro proposto pelo PÚBLICO tinha tudo para dar certo. E deu.

Nessa manhã, o arquitecto veio propositadamente de Lisboa de comboio, e chegou a Serralves com a excitação e a expectativa de um fã. “Para mim, é um momento extraordinário. Que eu espero desde que visitei a exposição na Tate.”

Cildo Meireles guiou-o pela sua exposição em Serralves. Para um artista conceptual (que chegou a recusar essa classificação porque “começou a achar que as exposições de arte conceptual que estava vendo eram muito chatas”), ele explica a génese das suas obras sem demasiados filtros analíticos. Tudo parece irradiar da memória e de experiência vivida. Manuel Aires Mateus notou que a arte brasileira é dotada de uma informalidade que ele gostaria que contaminasse a cultura artística portuguesa. E foi quase como se perguntasse: como é que vocês, brasileiros, fazem?

Cildo Meireles: “Na Europa normalmente as pessoas se dirigem aos outros pelo nome de família. ‘Senhor Magalhães’... No Brasil praticamente não existe essa coisa de nome de família. Raramente. É sempre o primeiro nome. O Manuel. O Cildo. O Pedro. Você passa por cima da coisa de família. Talvez isso se explique – e explique a informalidade, também – a partir da observação de um sociólogo brasileiro chamado Gilberto Freyre. Ele dizia que a sociedade brasileira se encontrava na cama.” Freyre atribuiu um carácter democratizador à colonização portuguesa, notando que ela permitiu o cruzamento entre africanos, índios e brancos. “Então o Brasil sempre foi criado com essa mistura de raça”, notou Cildo. “E isso acaba desformalizando as relações.”