Voltar a respirar sozinho, a andar, a correr. Com uma bola nos pés

O serviço de Pediatria do IPO do Porto tem uma equipa de futebol com crianças que ali recebem ou receberam tratamento. Nesta segunda-feira parte um pequeno grupo, de bicicleta, para o IPO de Lisboa, para dar a conhecer os “Resistentes” e incentivar o instituto da capital e criar um projecto similar.

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Eva tem o cabelo, louro e denso, preso num rabo-de-cavalo e está irrequieta. “Nem te conhecia”, diz-lhe um voluntário do IPO do Porto, à chegada ao Estádio Padre Sá Pereira, em Esposende. “Já tenho sete anos”, responde-lhe ela, como se isso explicasse tudo. A mãe, Aida Fernandes, 33 anos, dirá um pouco mais tarde, recordada daquela conversa, enquanto deita um olho à filha: “Eles ficam tão diferentes”. Eva ficou diferente quando, aos quatro anos, lhe foi diagnosticada uma leucemia. A imagem dessa menina fragilizada, com internamentos prolongados no IPO, só pode estar a passar pela cabeça de Aida, quando os olhos dela se enchem de lágrimas, que engole, corajosa. Porque, hoje, Eva está ali para jogar à bola. É só uma criança que corre e salta e brinca com os outros “Resistentes” da pediatria do IPO do Porto. No dia 12 de Julho fez o último tratamento. A 1 de Setembro Aida ouviu boas notícias. “Está limpa, sem sinais da doença”, sorri, de olhos marejados. Nem todos os que ali estão podem dizer o mesmo, mas a bola que rola no campo sintético rouba sorrisos a todos eles.

Uma equipa de futebol do serviço de pediatria do IPO do Porto, composta por crianças que ali fizeram ou fazem tratamento, pode parecer um contra-senso, mas é exactamente isso que os “Resistentes” são. Não há treinos nem têm campo próprio, mas não falta um equipamento e há medalhas para todos, no fim de cada evento desportivo. E, desde que os “Resistentes” foram criados, há quatro anos, já lá vão 18 encontros. A ideia nasceu na cabeça de Alberto Nogueira, assim que entrou como voluntário para o serviço de Pediatria do IPO do Porto, há seis anos. Ligado à formação de futebol, treinador com carteira, pediu a um dos seus atletas, enfermeiro naquele hospital, que o levasse a conhecer o serviço. “Estava muito ligado à formação. E queria conhecer o outro lado”, disse.

O outro lado era o lado dos meninos que não corriam, saudáveis, campo fora. Dos que ficavam presos a uma cama de hospital, limitados no seu contacto com o resto do mundo e naquilo que podiam fazer, enquanto os tratamentos decorriam. Depois daquela visita, inscreveu-se como voluntário e pediu que o deixassem ir para o serviço de Pediatria. “Assim que cheguei lá comecei a interagir com eles e perguntava-lhes baixinho: ‘E se criássemos uma equipa de futebol?’ A resposta que tive foi: ‘Onde vamos treinar?’”.

Apresentado o projecto a médicos, à direcção e à administração do hospital, as aprovações foram surgindo e os “Resistentes” tornaram-se uma realidade. “É um projecto único no país, mas quero levá-lo para outros lados, até para fora. Quero saber se Espanha ou Itália têm algo do género, partilhar o que fazemos”, diz o voluntário de 67 anos. A primeira etapa nesta tentativa de expansão não ultrapassa fronteiras – vai só até Lisboa. E é aqui que entra outro voluntário nesta história.

Francisco Caldas trabalha na GNR de Ovar e é, há cerca de um ano, voluntário no mesmo serviço que Alberto. Hoje, quase não larga o rechonchudo Eduardo, carregando-lhe a garrafa de oxigénio que o prende à vida, enquanto o miúdo dá uns chutos na bola, ergue as mãos no ar e roda a cintura, numa dança de vitória que lhe assenta como uma luva. Mas, na segunda-feira, vai montar numa bicicleta, no IPO do Porto, e vai pedalar durante quatro dias até ao IPO de Lisboa. O objectivo é divulgar o projecto “Resistentes” junto dos voluntários daquele espaço, para ver se algum se anima a avançar com uma equipa similar. A viagem, por etapas, esteve para ser solitária, mas a divulgação da iniciativa nas redes sociais arranjou companhia a Francisco: dois amigos e um homem que o abeirou apenas na quinta-feira passada, pedindo para se juntar ao projecto, vão acompanhá-lo.

No campo sintético de Esposende, Eva já está equipada, mas o jogo ainda não começou. Ela não se importa. Ensaia um chuto no ar, ergue os braços e grita “golo”. Minutos depois, tendo como adversárias crianças de Esposende, já corre com os amigos do IPO pelo campo. Os “Resistentes” marcam primeiro, pelo pé do Ivo, a quem é preciso lembrar constantemente que tem que passar a bola aos companheiros. A Márcia, óculos encavalitados no nariz e uma grande cabeleira encaracolada, saltita, ansiosa, na baliza. “Ela gosta é de correr”, repara Francisco. E, pouco depois, há substituição de guarda-redes, para que a miúda possa cruzar o campo à vontade.

Ana Ferreira é médica do serviço de Pediatria do IPO e está ali, mais uma vez, a acompanhar a iniciativa, bem como um grupo de enfermeiras. “Este convívio permite-lhes começar a correr, a saltar. É como dar sentido a tudo o que eles passaram, uma forma de reintegrá-los na vida normal”, diz, recordando a satisfação de ver as crianças que “começam a passo e, na vez seguinte, já correm um bocadinho atrás da bola, entusiasmados com o movimento que não tinham antes”.

Desta vez, Bernardo Guedes, 18 anos, não vai para o campo. Com um sorriso estampado no rosto bonito e um gorro a esconder-lhe a falta de cabelo, conta como a leucemia lhe foi diagnosticada aos 15 anos. “Cheguei ao IPO inocente. A dor não é tanto a nível físico, é mais psicológica, porque há uma série de restrições. Ter que usar máscara, não ter cabelo, não poder ir à escola…”, diz, sem perder o sorriso. Isso foi da primeira vez. Agora, Bernardo está a tratar uma recaída, anunciada escassos meses depois de ter terminado a manutenção que se segue aos ciclos de quimioterapia. Desta vez, ficou “revoltado mesmo”. E com tudo. Até com os médicos. Mas, agora, diz, “sente-se bem”. E sorri sempre, sentado no banco, vendo a sua “pequena grande família do IPO” jogar à bola. Não podia faltar. “Conhecemo-nos todos, somos todos muito amigos, temos histórias semelhantes”.

Eduardo, 8 anos, também não joga com os outros. Só um pouco sozinho. Também ele sorri sempre. E é assim desde bebé, garante a mãe, Vera Martins, 35 anos. Mesmo aos 15 meses, quando estava tão fraco que não se segurava sentado, continuava a sorrir, diz. Foi nessa altura que lhe diagnosticaram a leucemia. Previram-lhe a morte várias vezes. “Não vai resistir, talvez não passe de amanhã”, recorda Vera ter ouvido aos médicos quando, dessa primeira vez, Eduardo entrou em coma, os rins lhe pararam e teve um derrame cerebral.

Mas ele ali está, a chutar a bola, a bambolear as ancas. Ninguém diria que o corpo reagiu mal ao transplante de medula há cinco anos. Que há dois que anda agarrado àquela garrafa de oxigénio. Que os pulmões quase não funcionam, que tem cataratas e epilepsia. Que os médicos disseram à mãe “é viver um dia de cada vez”. “Nunca se foi abaixo, é ele que nos faz ir em frente”, diz a mãe, de voz forte, sem sinais de lágrimas. Ela também é assim, como o filho. Recusa-se a desistir. Eduardo confessa que a garrafa é uma chatice, que se cansa, mas sorri: “É a vida”. E recebe mais um passe, chutando a bola com força.

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