Viver e morrer na Rua da Madalena

Pelo relato jornalístico de um incêndio no qual morreram 14 pessoas, entramos nas vidas de quem habitava um prédio popular na Lisboa de 1907.

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Não sei quem vive no prédio que vai do n.º 233 ao n.º 243 da Rua Madalena. Mas não se preocupem os eventuais moradores, não vou bater-lhes à porta. O facto é que ignoro quem lá vive hoje, mas sinto que conheço intimamente quem lá vivia no início do século XX. Vem tudo isto a propósito de uma reportagem.

Estava a folhear o livro Repórteres e Reportagens de Primeira Página, de Jacinto Baptista e António Valdemar, e encontrei o relato de “O Incêndio da Madalena”, um texto de 1907 assinado por Eduardo Fernandes (1870-1945), famoso chefe do serviço de reportagem do jornal O Século, mais conhecido pelo pseudónimo de Esculápio.

Na reprodução da primeira página do jornal do dia 13 de Abril daquele ano lá aparece o prédio semelhante a muitos outros de Lisboa e aparentemente igual ao que hoje lá continua, com excepção das escadas dos bombeiros encostadas à fachada e do chão pejado dos destroços do fogo.

Começa assim a descrição: “Pelas 2 e 10 da madrugada de hoje, irrompeu um incêndio, com extraordinária violência, no armazém de sedas do sr. António Fernandez, instalado no primeiro andar esquerdo do prédio da rua da Madalena, que faz esquina para a rua de Santa Justa, prédio de boa aparência, de seis janelas de frente, importantes estabelecimentos nas lojas.”

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O mais terrível, quando o repórter chegou ao local, era “o espectáculo dos pobres locatários, assomados às janelas, implorando socorro em altos brados, homens, mulheres e crianças, num desespero único”. Com as escadas em chamas, ninguém conseguia já sair. Duas raparigas acabaram por se atirar das janelas, morrendo na queda, que é descrita por Esculápio ao melhor estilo da época: “A mais nova cai sobre o candeeiro, que se parte ao embate e vem estatelar-se morta sobre as pedras. A segunda deixa a massa encefálica na rua, o crânio horrivelmente fracturado, a carne em estilhas. Um horror!”

O jornalista regista com extraordinário rigor o nome de todos os intervenientes e descreve a tragédia ao segundo e, mesmo assim, desculpa-se: “Compreende o leitor que, às 5 da manhã, de afogadilho, com o coração ainda a gotejar de mágoa de tão horroroso espectáculo, quase escrevendo com lágrimas, impossível seja pôr-lhe ante os olhos uma notícia muito exacta e pormenorizada do ocorrido.”

Imagine-se se assim não fosse. É que logo no parágrafo seguinte somos informados de que “o prédio incendiado tem, para a rua da Madalena, os nº 233 a 234. Nos nº 233 a 235 está a sucursal da Estrela de Prata, dos srs. Serra & Lima, armazém de iscas e café. O número 237 é a porta da escada. Os números 239, 241 e 243 estão ocupados pela antiga sapataria Baiões, do sr. Domingos Nunes da Silva”.

E por ali subimos, andar a andar, do armazém de sedas onde deflagrou o incêndio ao “consultório médico do sr. dr. Paiva Curado”, virando para a rua de Santa Justa onde encontramos um café e um carvoeiro e venda de vinhos, uma conjugação de negócios típica da Lisboa daquele tempo. Havia ainda “uma hospedaria muito conhecida” na cidade.

Sabemos assim, por exemplo, que “na sobreloja, do lado das escadinhas de Santa Justa, funcionava uma casa de toleradas [prostitutas]” da qual “todas as mulheres saíram para a rua em trajes menores lastimando-se depois na rua e chorando, em altos gritos, por terem deixado em casa todos os seus modestos haveres e os próprios vestidos de uso”.

Nos dias seguintes, Esculápio prossegue as suas reportagens. E a cada uma a vida daquele prédio se vai desenhando aos nossos olhos com mais pormenores. Ali estavam os escritórios da Sociedade Mercantil dos Empresários de Açougues, “que há pouco arrecadou o fornecimento de carnes à cidade”; noutro andar vivia o “sr. G.A. Patten Sá Vianna, cavalheiro e proprietário de louça fina da Rua da Prata”, que era vizinho de outros comerciantes, um “com loja de algibebe” (roupa feita), outro com “loja de ferragens”, outro ainda “com loja de mercador e alfaiate”.

Da detalhada lista dos habitantes constam também várias “criadas” que vivem com as famílias, e hóspedes, como um francês e professor de nome Luís Filipe Franc, e Salomão Banon, “israelita e curandeiro […] que morreu no fogo, bem como a sua esposa Aloh, um filho de 3 anos e outro de ano e meio, ainda não baptizado”.

A tragédia foi grande. Morreram 14 pessoas. Mas o que é mais interessante quando lemos hoje o relato de Eduardo Fernandes é que o drama de um incêndio pode, num texto jornalístico, transformar-se num retrato da Lisboa popular em 1907 e da vida de um prédio, de quem nele vivia — e de quem nele morreu nessa terrível noite em que “o clarão do incêndio inundava de luz a cidade e tornava incandescentes os prédios e as ameias do castelo”.

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