Vila Real de Santo António perdeu o comboio e ficou a ver passar os carros

A ponte sobre o rio Guadiana aproximou o Algarve da vizinha Andaluzia, mas quem viaja de comboio saiu fora dos carris. O apeadeiro, situado na zona fronteiriça, é hoje um símbolo da decadência da zona portuária.

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O funcionário da bilheteira diz que perderam “mais de 90% dos clientes” LUIS PO

O encerramento do antigo apeadeiro de Vila Real de Santo António empurrou os utentes do comboio para uma estação situada na periferia da cidade. A decisão, tomada depois da abertura da ponte sobre o Guadiana, em 1991, teve como consequência, entre outras, o declínio do transporte fluvial.

“Perdemos mais de 90% dos clientes”, observa João Martinho, funcionário da bilheteira, onde agora se vendem, quase a conta-gotas, os bilhetes de transporte de ferry para Ayamonte.

O lado norte da zona portuária desta cidade pombalina, virada para a Espanha, parece terra de ninguém. "Fica comigo para sempre”. A frase, parecendo querer perpetuar o momento em que alguém foi feliz, está escrita na parede do velho apeadeiro, abandonado.  

“Não há dúvida: se o comboio chegasse aqui, dava outra vida à cidade”, observa João Martinho, deixando cair um lamento: “Não é uma zona simpática”. No sítio onde está sentado – antes de terem sido abolidas as fronteiras  estiveram os agentes da PIDE a controlar o vaivém constante dos barcos a atravessar a fronteira. O lugar mantém apenas o simbolismo histórico da época.

As políticas de mobilidade e transportes colocaram o automóvel no centro de todas as decisões e é pela ponte, no vizinho concelho de Castro Marim, a meia dúzia de quilómetros de distância, que se processa quase todo o movimento entre Portugal e Espanha.

José Bento, reformado, chega à estação da CP, a pedalar vagarosamente na sua velha bicicleta. “Nunca tive automóvel”, diz, justificando a preferência pelos transportes públicos e pela mobilidade suave. “Vim aqui saber se amanhã terei comboio para estar em Faro às três da tarde”. O horário está afixado, mas ele queria receber a informação de viva voz. Não teve sorte. O comboio das 11h13 acabara de sair da estação, e logo a seguir fechou a bilheteira. A reabertura só acontecerá às 12h15.

“Despediram as pessoas, agora não há ninguém para dizer nada”, critica. Dá uma volta a observar as obras de manutenção que estão a ser feitas no edifício e regressa a queixar-se da falta de “alguém” para dar explicações. “Só vem aqui uma rapariga para vender os bilhetes, quando chega o comboio, vai-se logo embora”, justifica.

Um jovem aproxima-se, num andar balouçado ao som da música que lhe chega pelos headphones colados aos ouvidos. Procura os horários, olha o relógio e conclui: “O comboio já partiu, só vou para Faro depois de almoço”, comenta despreocupado. Filipe Salgueiro nasceu em França, encontra-se de férias na terra-natal dos pais, em Vila Real de Santo António. Da orelha direita, retira o auscultador para prestar mais atenção às perguntas. “Sim, ouvi contar umas histórias, quando era criança, sobre as pessoas que passavam para Espanha”, afirma, evocando retalhos de memórias difusas, do tempo das fronteiras fechadas.

Nessa altura o comboio tinha ligação directa ao barco. “Bem, agora também não fica longe, são para aí uns dez minutos a andar a pé”, diz José Marques, empregado da Docapesca, a entidade que tem actualmente a tutela sobre toda a zona portuária. Mas, logo a seguir, acrescenta: “Já não sei quando foi a última vez que viajei de comboio, mas há com certeza há mais de 30 anos”.

João Martinho confessa que também não é um utente habitual do caminho-de-ferro, mas reconhece a sua importância.  O retomar do interface entre o comboio e o barco, observa, “ iria trazer mais turistas, principalmente jovens”. Para compensar a falta de visitantes que chegavam à cidade, vindos de barco, a câmara de Vila Real de Santo António, depois da introdução de portagens na Via do Infante, lançou uma campanha promocional das suas praias, lembrando aos espanhóis que, até à praia de Monte de Gordo, não se paga portagens.  

Filipe Salgueiro salienta o anacronismo do comboio regional. “Levo quase hora e meia para percorrer pouco mais de 50 quilómetros até Faro. Circula a passo de caracol”. Durante as férias tem programada uma viagem a Lisboa, mas fará mudança de agulha no transporte. “Vou de autocarro, é mais confortável”. Opinião diferente tem José Bento: “De Faro para Lisboa, o pendular é muito bom, embora ainda tenha troços onde é obrigado a reduzir  a velocidade”.

Os autocarros continuam a parar junto à zona da antiga fronteira (Vila Real de Santo António/Ayamonte), mas tal como se passa noutras cidades não existe conjugação de horários na ligação entre os diferentes meios de transporte público. Os turistas que aqui chegam deparam-se com um cenário pouco convidativo.

Os carris que ligavam a estação ao apeadeiro foram arrancados, a zona ficou coberta de ervas daninhas e lixo. O Município de Vila Real de Santo António, em 2008, chegou a apresentar ao ex-IPTM – Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (entidade responsável pela área) uma proposta de gestão. O antigo apeadeiro seria transformado num espaço cultural e a zona envolvente seria requalificada com a construção de uma ciclo-pista. Junto do município, o PUBLICO procurou uma justificação para a não concretização dos projectos, mas não obteve resposta.  
             
Do Guadiana ao Sado e ao Tejo sem mudar de comboio
Em 1985 era possível entrar num comboio no apeadeiro de Guadiana - em pleno centro de Vila Real de Sto. António e mesmo ao lado dos barcos que fazem a ligação com Ayamonte - e viajar directamente para Setúbal ou Barreiro sem quaisquer transbordos. Hoje, 30 anos depois, a mesma viagem só é possível se for feita em três comboios.

A CP não faz menos: obriga os passageiros a dois transbordos e a três tipos de comboios diferentes. Primeiro um regional até Faro, depois um Intercidades até Pinhal Novo e depois um suburbano para Setúbal ou Barreiro.

Há 30 anos, quem viesse de Espanha tinha o comboio – que era bem visível desde Ayamonte – mesmo em frente ao rio. Hoje os turistas que atravessam o Guadiana terão de ir a pé ou de táxi para a estação que fica nos arredores. E o que ganhou a cidade? Dois quilómetros de mato na frente ribeirinha e um antigo apeadeiro em ruínas em pleno centro.

A CP, num mail enviado ao PÚBLICO, diz que “as vantagens do apeadeiro Guadiana estavam relacionadas com o facto de estar situado mesmo ao lado do posto fronteiriço e junto ao porto fluvial”. Mas que depois as circunstâncias se alteraram: a abertura da ponte sobre o Guadiana reduziu o número de passageiros dos barcos e a cidade cresceu em direcção à actual estação tornando-a menos isolada.

Como “a própria infra-estrutura foi desaparecendo com o tempo”, a CP diz que “não existem actualmente razões de índole comercial que possam justificar a reactivação deste ramal”.

No entanto, é corrente em todos os congressos e seminários sobre transportes que responsáveis da CP refiram as vantagens da intermodalidade e do comboio servir o centro das localidades. Neste caso, a intermodalidade seria entre o caminho-de-ferro e o transporte fluvial.

Questionada sobre o deficiente funcionamento das bilheteiras da estação de Vila Real de Sto. António, a CP diz que este já regularizado com um turno das 10h15 às 15h45.

A transportadora pública diz ainda que “tratando-se de uma estação terminal, a importância de Vila Real de Sto. António é indesmentível”, mas que é necessário ter em conta a existência de estações que apresentam maior volume de passageiros como é o caso de Faro e Olhão.

Vila Real de Sto. António é hoje servida por 13 comboios para Faro e dez em sentido contrário que, com paragem em todas as estações e apeadeiros, demoram 1 hora e 10 minutos a fazer 55 quilómetros. com Carlos Cipriano

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