Valsas, damas e cavalheiros à solta num museu de arqueologia

Recriação na Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, é inspirada numa festa que o patrono da instituição organizou em 1877.

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A recriação idealizada durante a Capital Europeia da Cultura de 2012 foi agora viabilizada por cerca de vinte patrocinadores Fernando Veludo/NFactos
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A recriação idealizada durante a Capital Europeia da Cultura de 2012 foi agora viabilizada por cerca de vinte patrocinadores Fernando Veludo/NFactos
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A recriação idealizada durante a Capital Europeia da Cultura de 2012 foi agora viabilizada por cerca de vinte patrocinadores Fernando Veludo/NFactos

O compasso acelerado da Marcha de Radetzky, de Strauss, sai do grande salão, mas chega abafado ao interior da biblioteca. Lá dentro, a meia-luz, são as palavras de um português que prendem a atenção do público. Repete-se, como Almeida Garrett faria, “não te amo, quero-te”. Em volta, cavalheiros de chapéu alto e casaca comprida, acompanham damas de vestidos vistosos e penteados ornados. Podia ter sido algures na fase final do século XIX, mas foi ontem em Guimarães, na recriação história O Baile.

A iniciativa é da Sociedade Martins Sarmento (SMS), uma instituição que nasceu precisamente nesse tempo, e pretende recriar as soirées que o seu patrono oferecia aos convidados. Por isso, o velho museu de arqueologia esteve este sábado engalanado, com flores a enfeitar colunas góticas e excêntricas lanternas de papel junto a vitrinas com artefactos castrejos. Às últimas horas da tarde eram a poesia e a música oitocentistas que preenchiam as salas e corredores. O momento mais esperado estava, porém, reservado para depois do jantar.

Os convidados foram então chamados para o baile que dá título à recriação. Foi então que os cavalheiros pousaram os chapéus, as damas ajeitaram os vestidos e dançaram ao som de valsas, polkas e quadrilhas, tocadas ao vivo por jovens músicos locais. Com os maneirismos e cortesias da época, debaixo dos três grandes candelabros do salão nobre da SMS, não pararam até perto da meia-noite.

O grupo de baile trabalhou nos últimos dois meses sob a coordenação do especialista em dança do século XIX Maurício Padovani, numa “formação aberta a toda a comunidade”, conta Rafalea Salvador, directora artística da recriação. O número de participantes acabou por “exceder as expectativas” e compareceram três dezenas de dançarinos, um grupo heterógeno com participantes dos 20 aos 60 anos.

O Baile é inspirado nos serões promovidos por Francisco Martins Sarmento, o patrono da SMS, sobretudo naquele que foi oferecido, em 1877, aos convidados da primeira conferência arqueológica que acolheu em Guimarães. “Pelas descrições da época, percebemos que ele era alguém que gostava de receber, e sabia fazê-lo, os ilustres visitantes daquela altura”, explica Antero Ferreira, director da instituição vimaranense. Os convidados chegaram nessa altura de vários pontos do país e da Europa para visitar as ruínas da Citânia de Briteiros, que Martins Sarmento estava a estudar. E, no final do dia, dirigiam-se para o seu palacete no centro da cidade, para a recepção.

A intenção da SMS é “respeitar a memória de Sarmento”, mostrando as múltiplas perspectivas da vida de um homem ímpar, que, além de pioneiro da arqueologia no país, foi fotógrafo e figura central da geração que organizou, por exemplo, a Exposição Industrial de Guimarães, poucos anos depois. De algum modo, ele representa a imagem do gentleman abastado do final do século XIX. As descrições dos jornais da época dão conta, precisamente, de um ambiente de requinte e fausto, que inspiraram esta recriação.

Os documentos da época são, de resto, a base de todo o trabalho de produção da iniciativa: dos penteados ao guarda-roupa, da decoração à comida servida no jantar. Tudo o que aqui pôde ser visto, feito ou provado é a reprodução tão fiel quanto possível do serão de Martins Sarmento e das grandes soirées do final do século XIX. A produção ficou depois a cabo das dezenas de vimaranenses que quiseram inscrever-se nas várias oficinas que permitiram criar as várias peças de roupa usadas.

Essa participação transversal é outra das grandes forças da iniciativa, defende a organização. Promovido pela SMS, O Baile foi incluído no programa Constelações, nascido do consórcio de associações vimaranenses criado para a Capital Europeia da Cultura do ano passado. Mas o financiamento recebido não chegava para levar a cabo a iniciativa, pelo que foram fundamentais os cerca de vinte patrocinadores e as parcerias com outras instituições culturais e escolas do concelho. O trabalho de preparação também permitiu chamar para a instituição pessoas que, em muitos casos, nunca ali tinham entrado. “Também por isso, a ideia é que possa manter-se”, diz Antero Ferreira. A ser assim, no próximo ano, Guimarães voltará ao século XIX, num passo de dança.
 
 
 
 
 

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