Uma questão de pormenor

Por muito que o Porto possa ser um casario em cascata a estender-se, colorido, até ao Douro, ele também é feito de pormenores. Como por exemplo os batentes das portas.

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Se fecho os olhos e imagino o Porto, é o casario a cair sobre o Douro, visto do lado de Gaia, que vejo primeiro. Pode seguir-se, nesse meu observar de olhos fechados, a Avenida dos Aliados, com os Paços do Concelho ao topo, ou a Torre dos Clérigos, escudada, de um dos lados, pelas casas coloridas da cidade velha. Por isso, a cidade sempre me pareceu mais bem descrita no seu todo do que em pormenores, mas será assim? Se calhar, não; se calhar, o Porto pode ser só uma varanda de ferro, um azulejo azul e branco ou um antigo batente de porta.

É verdade que dificilmente abarcamos a cidade no seu todo, ou melhor, é difícil abarcarmos até mesmo no seu todo aquela rua ou a praça onde passamos todos os dias. Geralmente, olhamos em frente ou para baixo, fazemos sempre o mesmo caminho, esquecemo-nos de olhar em volta e para cima, lá para cima, onde há telhados em cascata, clarabóias e painéis coloridos de azulejo. Às vezes, basta atravessar a rua para nos surpreendermos com aquela fachada sob a qual passamos nos últimos anos mas que nunca observáramos à distância. Pormenores. Os pormenores são importantes e, por muito que o Porto possa ser um casario em cascata a estender-se, colorido, até ao Douro, ele também é feito de pormenores.

A Maria João, que trabalhou comigo noutro jornal e mora no coração do Porto, tem andado, há já algum tempo, a mostrar-me esses pormenores. Ela criou uma página no Facebook, a que chamou Batem Leve, Levemente (verso “roubado” à Balada da Neve, de Augusto Gil) e onde vai colocando imagens dos batentes com que se cruza nas ruas da cidade. Aparentemente, é uma paixão partilhada, já que vários amigos da Maria João ou simples seguidores da página lhe têm enviado fotografias, que ela vai publicando, destes pequenos utensílios instalados em portas um pouco por todo o país. Ela diz que desde a primeira fotografia, na Rua de Cedofeita, nunca mais conseguiu deixar de prestar atenção às portas por onde passava, em busca de um batente original. E, este pormenor sem importância, este pequeno pedaço de uma porta grande, de um edifício ainda maior, numa rua qualquer, de uma cidade, passou a ser a estrela do dia.

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O Porto passou a ser, também, uma cidade onde se pode bater a uma porta pegando na argola que pende de uma cabeça feminina, ou na mão, mais ou menos adornada, que segura uma esfera. O Porto é a cidade que tem como batentes um passarinho, um leão ou uma grinalda. Também existem algumas figuras estilizadas, que nos convidam a adivinhar o que escondem, cães e simples argolas sem pretensões. E, depois, há aquela relíquia, na Rua do Bonfim, em que, sob um batente simples, alguém colocou uma placa com a indicação: “1.º Andar 2 Pancadas; 2.º Andar 3 Pancadas.”

A verdade é que o Porto também cabe todo nestes batentes — estão lá as casas apalaçadas da burguesia, com os seus batentes mais trabalhados, as habitações degradadas, com os batentes enferrujados em portas com tinta descascada, e estão ali os graffiti desordenados, que rodeiam uma velha mão dourada, onde alguém colou um autocolante, que se junta, assim, a outros autocolantes de propaganda política e de publicidade espalhados pela porta.

Por causa da Maria João também eu comecei olhar com mais atenção as portas de cada prédio, em busca de um batente que nunca tinha visto, em busca dessa cidade pequenina que corre, invisível, sob os nossos olhos. E, olha, Maria João, não sei se já reparaste, mas ali a chegar ao Largo de Alberto Pimentel há um belo leão que não sei se alguém ainda usa para chamar quem está dentro de portas. Mas que está mesmo a pedir para ser fotografado.     

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