Quando o património da construção naval sai a rua

A autarquia de Vila do Conde quer projectar a tradição da construção naval em madeira, a nível nacional e internacional. Tudo começa num espectáculo de teatro comunitário.

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Fernando Veludo/nfactos
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Os estaleiros navais de Vila do Conde já não são o que eram. Já não se constroem grandes barcos para a pesca artesanal, as empresas ali instaladas vivem basicamente de reparações, e, por isso mesmo, na margem sul do Rio Ave, há um património, o das técnicas de construção naval em madeira, que urge estudar, preservar e, se possível, valorizar. O município está apostado em inscrever estas tradições no inventário nacional e, a seguir, no quadro de honra da UNESCO, e esse caminho começa unindo a população numa representação sobre estes saberes, que vai à cena no final de Agosto.

Chamam “Vila do Conde — Um Porto para o Mundo” a este projecto de preservação da construção naval em madeira que explora uma tradição que, na foz do Ave, tem séculos, e que está bem demonstrada na nau, fundeada junto à Alfandega Régia. Exemplo, aqui construído há duas décadas, das muitas que saíram deste porto para as sete partidas do mundo. Entre as várias etapas da viagem a que o grupo de trabalho criado se propõe estão a realização de um congresso internacional sobre a construção naval e o o aumento da produção científica sobre este tema. Mas, para já, o “ano zero” começa com uma experiência de teatro comunitário, onde profissionais e amadores pretendem manter viva na memória local esta marca da identidade vilacondense. 

Desde 22 de Junho que as quartas-feiras estão reservadas na agenda de mais de uma centena de pessoas de Vila do Conde e não só. Os ensaios do espectáculo musical ocorrem num armazém, para que os actores se possam ambientar a um cenário que excede as medidas regulares de um palco. Quem nos conta estes pormenores são os mestres de bastidores, Marcelo Lafontana, director de produção e Amauri Alves, o encenador.
E porquê um armazém? Um Porto para o Mundo será um espectáculo de rua, apresentado em frente à conhecida Nau Quinhentista, uma réplica de um navio em madeira, utilizado na época dos Descobrimentos e que tem encantado muitos dos que visitam Vila do Conde na Rua da Alfândega Régia.

A dança, o canto e a representação são as áreas em que a comunidade, com a ajuda de profissionais, poderá demonstrar os seus talentos. Tratou-se de um verdadeiro chamamento aos naturais de Vila do Conde. “Depois de se inscreverem no espectáculo, ninguém foi eliminado, aproveitamos as aptidões das pessoas”, esclarece Marcelo. Amauri acredita que o projecto acabou por se tornar pragmático face às qualificações e habilidades de cada um: profissionais, amadores e pessoas que nunca subiram a um palco na vida. “Quem tem jeito para dançar, vai para a dança. Quem canta bem, vai cantar”.

Os dois responsáveis pelo teatro musical têm raízes no Brasil, portanto não é de admirar que o português durante os ensaios se situe entre a América Latina e Portugal. “Não se trata de um espectáculo feito por brasileiros, é um intercâmbio cultural”, diz Amauri.

Marcelo Lafontana tem uma companhia de teatro sediada na cidade, a Lafontana. A nacionalidade brasileira e espanhola não o faz sentir menos português ou vilacondense. Conhece de trás para a frente a história deste lugar à beira-mar. O convite da autarquia para abraçar o projecto foi a oportunidade perfeita para Marcelo contactar um amigo de longa data, Amauri, promotor do maior espectáculo de teatro em areia de praia do mundo, que decorre em São Vicente, São Paulo.

Habituado a eventos de grande dimensão, Amauri sabe que as 215 pessoas envolvidas para já no Um Porto para o Mundo, desde actores à equipa de produção, não alcançam a multidão do litoral paulista, mas tal não diminui a importância do espectáculo. “Cada projecto novo é uma experiência: a emoção no final, a felicidade de poder recontar a história e as relações criadas entre as pessoas valem por tudo”, afirma.

O espectáculo faz-se de “falas cantadas”. É um musical em que as sardinhas, os pescadores, a vela com a Cruz da Ordem de Cristo e os mastros percorrem uma ode marítima. Na trama está a figura de Gaspar Manuel, cavaleiro da Ordem de Cristo e piloto-mor da carreira da Índia, China e Japão nos Descobrimentos.

A técnica de construção naval é uma tradição assimilada e adquirida, porém a preservação do património revela-se uma necessidade que só uma acção maior como Um Porto para o Mundo poderia garantir. É isso que espera Elisa Ferraz, presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde. “A cidade tem séculos de História fechados numa concha e agora queremos projectar a nossa identidade para o mundo. O desenvolvimento da construção naval em madeira está praticamente em vias de extinção, queremos agarrar o know-how que ainda existe”, argumenta.

Os estaleiros navais vilacondenses não são uma realidade tão presente como no passado. Hoje existem cerca de três estabelecimentos dedicados ao negócio, mas só procedem a obras de reparação nos navios. Ivone Lopes, coordenadora de Um Porto para o Mundo, afirma que há determinadas técnicas que os “próprios carpinteiros receiam usar” devido ao desuso em que caiu a tradição.

O grupo de trabalho partiu do pelouro da Cultura e propõe-se inscrever a construção naval em madeira no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial e na lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade. De 20 a 23 de Agosto, o percurso começa com o espectáculo musical em frente à Nau Quinhentista.   Texto editado por Ana Fernandes

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