Um castelo nas avenidas novas

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Conheço-o desde sempre. Quando era pequena e descia a Rua Marquês da Fronteira, onde moravam os meus avós paternos, passava por ali e ficava a olhar, intrigada, para o muro sólido, com as ameias e as guaritas, e depois para aquele misterioso castelo de miniatura, com a torre do relógio a erguer-se solitária ao lado do Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian.

Um castelo perdido no tempo. Estaria alguma princesa presa na torre do relógio? Esperariam os seus habitantes algum ataque de inimigos imaginários, como na imponente fortaleza de O Deserto dos Tártaros, o romance de Dino Buzzati, onde todos cumprem um rigoroso ritual de preceitos militares perante um deserto que nenhum exército adversário atravessa?

Provavelmente não, até porque o pequeno castelo de Lisboa está no meio de avenidas cheias de movimento, de trânsito, de pessoas, e ao lado de um dos mais belos jardins da cidade.

A história é bem menos misteriosa. O “castelo”, ainda hoje uma residência particular, é na realidade as antigas cavalariças e cocheiras de um grande parque, o Parque de Santa Gertrudes, que, juntamente com o palácio em frente, o Palácio Vilalva, pertenceu no século XIX a José Maria Eugénio de Almeida, um dos sócios do “Real contrato do tabaco, sabão e pólvora”, e então um dos homens mais ricos de Lisboa. Separado do parque pela Rua Marquês de Fronteira, o palácio pertence hoje ao Exército.

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O projecto arquitectónico é da responsabilidade do arquitecto italiano Giuseppe Cinatti, que trabalhou também como cenógrafo do São Carlos

As primeiras construções datam ainda de meados do século XVIII. Antes do Palácio Vilalva, existia neste local o palácio do Provedor dos Armazéns, obra do arquitecto francês Fernando Larre, que o construiu inicialmente para habitação própria em 1730. Quando Eugénio de Almeida o adquiriu, mandou derrubar uma série de edifícios em redor, abrindo o Largo de São Sebastião da Pedreira para dar outra dignidade ao seu palácio. O futuro Parque de Santa Gertrudes era então a Quinta da Provedoura.

Conta-se — mas ninguém sabe até que ponto se trata de uma lenda — que José Maria Eugénio de Almeida tinha feito uma viagem à Escócia, onde esteve alojado na propriedade de um lorde que terá insinuado que os portugueses nada sabiam de cavalos. Ao regressar a Portugal, o empresário português terá mandado construir as cavalariças e cocheiras no Parque de Santa Gertrudes à imagem de um pequeno castelo, para demonstrar ao lorde que os portugueses não só percebiam de cavalos como faziam para eles instalações semelhantes àquela que na Escócia se faziam para as pessoas.

Certo é que o projecto arquitectónico, da responsabilidade do arquitecto italiano Giuseppe Cinatti (que trabalhou também como cenógrafo do Teatro Nacional de São Carlos desde 1836), mistura estilos muito diferentes, desde o das construções militares medievais, a janelas com influência manuelina, passando pela torre do relógio que evocará o Palácio da Pena, em Sintra.

Gravuras antigas mostram que no final do século XIX, mais exactamente em 1884, o grande portão sobre o arco de pedra à entrada do parque estava aberto a todos os lisboetas. Em Maio desse ano, e por cedência do espaço pela família Eugénio de Almeida, foi aqui inaugurado o primeiro Jardim Zoológico e d’Acclimatação de Lisboa. As gravuras mostram um parque magnífico, exótico, com um grande lago no meio, árvores e plantas de todos os tipos, quiosques, tendas e imaginativas construções, que pareciam saídas de um livro de Julio Verne, para albergar os mais de mil animais que ali podiam ser vistos. Com algumas modificações, o Jardim Zoológico funcionou ali até 1909, altura em que foi transferido para a Quinta das Laranjeiras, onde continua até hoje.

Por isso, quem passar agora pelo muro de pedra com as suas ameias e guaritas, junto à Gulbenkian, não espere ver soldados escondidos prontos a lançar flechas pelas frinchas, nem uma princesa desesperada, de longos cabelos, a pedir ajuda na torre do relógio. A história é bem mais simples. Quanto muito, poderá, quem sabe, vislumbrar algum animal exótico que tenha ficado esquecido nos jardins no dia em que o Jardim Zoológico daqui saiu.

Nota: várias informações citadas neste texto foram retiradas do trabalho Às Portas de Lisboa: O Palacete de J.M. Eugénio de Almeida, da autoria de Joana Cunha Leal, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa     

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