Tribunal “quis fazer pedagogia” ao condenar mestre envolvido em naufrágio

Advogado do armador do Jesus dos Navegantes vai recorrer da pena de dois anos e meio de prisão, com pena suspensa.

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Naufrágio aconteceu a meia milha da barra da Figueira da Foz Nelson Garrido

A condenação, esta segunda-feira, do mestre da embarcação Jesus dos Navegantes a dois anos e seis meses de prisão - em pena suspensa - por quatro crimes de homicídio por negligência “vai acelerar” a introdução da obrigatoriedade legal da utilização de coletes salva-vidas a bordo dos barcos de pesca, sobretudo à saída para o mar, acredita o presidente da Associação Pró-Maior Segurança dos Homens do Mar (APMSHM). Para o advogado do mestre, o colectivo de juízes pretendeu fazer pedagogia com este caso, de uma forma que considera “injusta”, e que vai, por isso, merecer recurso.

O presidente da APMSHM, José Festas, acredita que brevemente o uso de coletes vai ser obrigatório, mas não afasta a ideia de que o seu conterrâneo Francisco Fortunato - mestre e proprietário da embarcação matriculada na Póvoa de Varzim e que foi virada por duas vagas de mar praticamente consecutivas quando saía da barra da Figueira da Foz, a 25 de Outubro de 2013 - “tudo fez para salvar a tripulação, correndo ele próprio um risco de vida “. E, naquela circunstância, com os pescadores a ficarem debaixo da embarcação submersa, a utilização dos coletes dificultaria a saída debaixo do casco invertido, acredita.

O certo é que acabaram por morrer quatro dos oito elementos da tripulação da Póvoa e de Caxinas (Vila do Conde), e à mulher e filhos de um deles, que se constituíram assistentes no processo ontem sentenciado na 1.ª instância no Tribunal de Coimbra, o armador vai ter ainda de pagar uma indemnização de 40 mil euros.

Ao PÚBLICO, Abel Maia, advogado do mestre, sublinhou que, com este caso, o colectivo de juízes  “quis fazer alguma pedagogia” sobre a necessidade de os pescadores utilizarem os coletes, mas recorrendo a uma interpretação “que tem de merecer recurso” porque “assacar ao mestre uma responsabilidade criminal não é justo”, afirmou.

Na sentença do colectivo, lida pelo juiz João Ferreira, é defendido um princípio geral da legislação laboral - o dever de cuidado da entidade patronal para com os seus trabalhadores, identificando todos os riscos - que é “taxativo” e que devia ter obrigado o mestre a ordenar aos tripulantes, sob a sua alçada hierárquica, que colocassem os coletes salva-vidas e descalçassem as botas de água de cano alto. O facto de haver “um ambiente desresponsabilizante” atenua a culpa, mas não a elimina, insistiu.

O procedimento necessário estava descrito num edital da capitania do porto da Figueira da Foz e ao não tê-lo seguido, o mestre adoptou “uma conduta negligente” cujo efeito resultou na morte de quatro tripulantes, considera o tribunal. Mas para Abel Maia esse documentonão tinha a força de uma lei porque “não foi publicado no Diário da República”, ao contrário do que tem de suceder com demais regulamentos.

“O mestre não tinha conhecimento do edital e isso ficou provado pelo tribunal”, sublinhou, dando ainda outra vertente: “ Ainda que [o mestre] tivesse sabido do teor, está lá um conselho e não uma imposição”. Mas o aspecto mais polémico - a falta de coletes salva-vidas por parte dos pecadores - é também para Abel Maia o mais axiomático. “A lei não obriga à utilização dos coletes [para embarcações com mais de onze metros sendo que a “Jesus dos Navegantes” tinha 14] e são os próprios tripulantes que, também sabendo disso, se recusam a colocá-los”, disse. “Se as autoridades públicas e o legislador fazem mal, não pode ser o pescador a sofrer”, sublinhou.

O colectivo socorreu-se de um testemunho pericial que valorizou a utilização dos coletes e o juiz disse que a convicção dos pescadores de que os coletes seriam prejudiciais para escapar com vida- e dois dos sobreviventes foram dizê-lo a tribunal - “não é sustentada de forma cientifica. “Pois, mas também não há “uma prova científica de que, com os coletes, todos se salvassem”, contrapõe Abel Maia.

A decisão judicial causou “admiração e revolta nas comunidades piscatórias de todo o país”, assegurou ao PÚBLICO José Festas que dirige uma instituição com mais de 700 barcos associados e que tem como objectivo a promoção dos meios de salvamento marítimo a bordo das embarcações, mas também nos portos de pesca. “Pode não cair bem haver um dirigente que está sempre a falar de segurança parecer contra a utilização dos coletes. Mas cada caso é um caso e no do Jesus dos Navegantes o mestre fez tudo o que deveria ter sido feito”, justificou.

"Pode não cair bem haver um dirigente que está sempre a falar de segurança parecer contra a utilização dos coletes. Mas cada caso é um caso e no do 'Jesus dos Navegantes' o mestre fez tudo o que deveria ter sido feito", justificou. Francisco Fortunato remeteu-se ao silêncio, mas foi transportado por José Festas até ao tribunal de Coimbra e no regresso a Caxinas. "Ele ficou muito mal e só dizia que tinha feito o que sempre todos fizeram. Só ficou melhor um pouco por ter sido ilibado de ter causado o naufrágio, algo que não entra mesmo na cabeça a um homem que vive da pesca", revelou. A sentença separou bem as águas com a frase "a questão do naufrágio é uma coisa e a morte dos marítimos é outra".

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