Tribunal obriga Câmara de Lisboa a pagar dívida de 3,3 milhões a construtores de casas para jovens

Autarquia invoca ilegalidade cometida por si própria na contratação de empreitada nas Galinheiras e na Ameixoeira para se eximir a pagar trabalhos que encomendou há perto de dez anos.

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Na Ameixoeira, as principais queixas dos moradores relacionam-se com a insegurança Pedro Cunha/Arquivo

O Tribunal Central Administrativo Sul decidiu que a Câmara de Lisboa vai ter de pagar uma dívida de 3,3 milhões de euros a um consórcio ligado ao sector imobiliário. A autarquia anda há perto de dez anos a eximir-se ao pagamento, a pretexto da falta de um visto do Tribunal de Contas.

Em causa estão dois empreendimentos de habitação para jovens construídos na Ameixoeira e no Bairro Novo das Galinheiras em 2004, através de um protocolo firmado entre a autarquia, então dirigida por Carmona Rodrigues, e o consórcio HSE, composto pela Hagen, pela Somague e ainda pela Luz e Alves. Os preços convidativos dos 900 apartamentos que foram feitos seduziram muita gente, apesar dos problemas de insegurança, que ainda hoje se mantêm. A autarquia entrou com os terrenos, o consórcio com as empreitadas. A pedido da Câmara de Lisboa, a HSE realizou ainda obras de infra-estruturas nos dois empreendimentos que cabiam ao município fazer, no valor dos tais 3,3 milhões. Foi a esta parcela dos custos do empreendimento que o Tribunal de Contas franziu o nariz no início de 2007, recusando o visto ao respectivo contrato.

“O procedimento aplicável para a adjudicação daquela empreitada é ilegal”, decidiram os juízes que têm como missão zelar pelo rigor das contas públicas. “O contrato devia ter sido precedido de concurso público”. Perante a gravidade da violação das regras da contratação pública, esta parte do negócio do município com o consórcio é decretada nula. E é precisamente com base nisso que a Câmara de Lisboa se tem vindo a eximir nos últimos anos, já com António Costa, a pagar o que deve. “A falta de visto do Tribunal de Contas implica necessariamente a ineficácia do acordo [com a HSE], ineficácia esta que se revela intransponível”, alegam, perante os juízes, os advogados da autarquia, que acaba por ser accionada judicialmente pelo consórcio para entregar o dinheiro em falta. Negam ainda valor contratual à deliberação da Assembleia Municipal de Lisboa que autorizou o pagamento.

Condenada em primeira instância em 2011, a Câmara de Lisboa não desistiu e apelou para o Tribunal Central Administrativo Sul. “É certo que a recusa de visto tornou ineficaz o contrato”, pode ler-se no acórdão que deverá pôr fim à disputa de uma vez por todas, e que foi emitido já este mês. Mas isso “não significa que não tenham de ser pagas as quantias devidas” pelos trabalhos efectuados, cuja execução não foi posta em causa. Assim sendo, não resta a António Costa senão pagar a obra encomendada pelo seu antecessor - até por causa de a maioria dos acórdãos que confirmam decisões de primeira instância, como é o caso, não serem passíveis de recurso. Aos 3,3 milhões acrescem ainda juros de mora, contados à taxa anual de 4%.

Contactados pelo PÚBLICO, nem o grupo Elevo, no qual se integra hoje a Hagen, nem a Câmara de Lisboa quiseram prestar qualquer esclarecimento sobre a matéria.

Quando o barato sai caro
As rachas nas fachadas contribuem para o ar precocemente envelhecido das casas de custos controlados erguidas há dez anos no Bairro Novo das Galinheiras, que também dá pelo nome de Quinta do Grafanil. Aqui, onde existia um bairro de barracas cujos habitantes foram realojados a algumas centenas de metros adiante, a maioria das lojas não chegou sequer a ser ocupada e continua com as paredes interiores no tijolo, por rebocar, como há uma década. “Está tudo ao abandono, porque o empreiteiro faliu”, lamenta o proprietário de um dos poucos estabelecimentos abertos, um mini-mercado. Para combater as infiltrações no WC, que se estendem à divisão que usa como armazém, improvisou um tubozinho colado aos azulejos que encaminha as escorrências, para que não lhe inundem a loja: “Como isto foi mal feito inventei esta engenhoca”. Uma operadora de loja que também mora no bairro desde a altura em que as construções precárias foram substituídas por prédios para a classe média explica que são principalmente os pisos térreos e subterrâneos que sofrem com as infiltrações. “Algumas das fachadas, que são bege clarinho, mudam de cor quando chove e ficam de um amarelo acastanhado”, descreve. “Quando reclamámos junto do empreiteiro por causa dos problemas nem sequer nos respondeu, apesar de estarmos dentro do prazo legal”, recorda. Uma das coisas que mais a incomoda é ter havido gente que partiu os vidros das lojas por ocupar para ir dormir lá para dentro.

As relações entre os antigos habitantes das barracas, a maioria dos quais é de etnia cigana, e os novos moradores nunca foram pacíficas. Uns barricam-se dentro de casa, colocam grades nas janelas e vidro partido nos pontos dos prédios mais expostos à intrusão e ao roubo para que os outros não se assenhorem do que é seu. “Isto era as nossas barracas”, sublinha uma cliente do minimercado, como que vincando a posse de um território.

90 mil euros era quanto pediam em 2006 por apartamentos a estrear de quatro assoalhadas, com arrecadação e garagem, mas por 45 mil já se conseguia um T1. Era assim nas Galinheiras e também na vizinha Ameixoeira, onde foi construído o segundo empreendimento para jovens. “Relação com as pessoas do bairro de realojamento? Não há relação”, responde uma professora primária. “Eles vêm por aí abaixo e já entraram no meu prédio para arrombarem garagens e arrecadações”. Na espaçosa avenida onde se alinham os prédios, a Fernando Gusmão, a principal razão de queixa não é a qualidade das casas, mas a insegurança motivada pelo vandalismo praticado pela vizinhança. “Até corridas de carros aqui faziam durante a noite. Para acabarem com elas tiveram de colocar lombas na estrada”, conta. Aponta as ervas daninhas que crescem agarradas aos edifícios, semeadas de lixo: “Dantes ainda faziam a limpeza do espaço público, mas agora isto está completamente abandonado”. Parte dos habitantes vendeu as casas depois dos cinco anos que estavam obrigados pela Câmara de Lisboa a mantê-las na sua posse. A professora primária ainda subsiste: “Gostava de morar noutro lado. Mas por este preço…”.

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