Todos à serra porque Gouveia vai mostrar o que lhe corre nas veias

Três dias, mais de 70 actividades, na encosta da serra da Estrela. G!O Romaria Cultural está de volta com uma intervenção no mercado municipal, um Instameet serrano e filmes da Monstra. De sexta a domingo, Gouveia, terra de Vergílio Ferreira e Abel Manta, não vai ter sossego. Um interior que resiste

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Adriano Miranda

No ano passado, António Monteiro, proprietário da Casa Gouvex há 42 anos, arrumou a montra da sua retrosaria para um concerto de rock de um jovem lá da terra conhecido como Criatura Azul. Este ano, o espaço será palco de uma performance de dança. O senhor Monteiro não se importa com as arrumações de roupas, carteiras, botões, novelos de lã, elásticos. “A montra fica à vossa disposição”, confirma com um sorriso. “No ano passado, fiquei maravilhado, foi um bocado trabalhoso, mas gostei muito e isto devia continuar porque vale mesmo a pena”, diz-nos numa quinta-feira quente de Julho pouco antes de fechar para almoço. O calor da serra sente-se no corpo e as conversas na cidade, de um concelho com apenas 14.800 habitantes e 16 freguesias, giram em torno da G!O Romaria Cultural.

A iniciativa está em preparação em Gouveia, na encosta da serra da Estrela, pela mão de 11 romeiros – leia-se organizadores da iniciativa, uns que moram ali, outros que partiram e voltam sempre e que falam daquele território como o melhor do mundo e que garantem de peito aberto que têm Gouveia nas veias. Só assim é possível arrebitar esta cidade, a mais envelhecida do país, com mais de 70 iniciativas em três dias, entre esta sexta-feira e domingo. O mercado ganha um novo visual, há um instameet com gente que percebe da arte, exposições, uma extensão da Monstra – Festival de Cinema de Animação de Lisboa, futebol de rua, a exibição do documentário O Povo que Ainda Canta – De Gouveia à Beira Litoral de Tiago Pereira, fado, concertinas, música – o Bode e os Psicotronics vão à serra -, danças, contos, teatro, projectos de cidadania, feira de troca de brinquedos, animação infantil. E é tudo à borla.

Gouveia já não tem sossego. “De cara lavada é outra coisa”, diz em voz alta Maria Lídia, filha de mãe queijeira, vendedora no mercado municipal há 28 anos. A intervenção no mercado de Gouveia começou há poucas horas pela mão do colectivo criativo Circus do Porto. Maria Lídia perguntou o que ia acontecer e soube que naquelas paredes vão aparecer produtos típicos da região como queijos e enchidos. “Se precisava desta mudança? Ai se precisava”, atira. O muro da fachada do mercado também sofrerá alterações, os esboços estão feitos, e os retratos dos pesos pesados lá da terra, do escritor Vergílio Ferreira e do pintor Abel Manta, surgirão, mais lá para frente, nas torres do edifício.

Gouveia já não tem sossego. “De cara lavada é outra coisa”, diz em voz alta Maria Lídia, filha de mãe queijeira, vendedora no mercado municipal há 28 anos. A intervenção no mercado de Gouveia começou há poucas horas pela mão do colectivo criativo Circus do Porto. Maria Lídia perguntou o que ia acontecer e soube que naquelas paredes vão aparecer produtos típicos da região como queijos e enchidos. “Se precisava desta mudança? Ai se precisava”, atira. O muro da fachada do mercado também sofrerá alterações, os esboços estão feitos, e os retratos dos pesos pesados lá da terra, do escritor Vergílio Ferreira e do pintor Abel Manta, surgirão, mais lá para frente, nas torres do edifício.

A temperatura sobe à hora de almoço. Alguns romeiros juntam-se numa esplanada para a refeição, trocam impressões. Noutra mesa, está Alípio de Melo, primeiro presidente da Câmara de Gouveia após o 25 de Abril e que dá nome a um jardim da cidade. Apercebe-se da agitação, da troca de opiniões, e fica no seu canto. “É óptimo que haja um grupo de jovens a mexer num certo envelhecimento que a cidade padece há alguns anos”, comenta quando lhe perguntam o que pensa da Romaria. “O que for jovem é sempre bem-vindo”, acrescenta para depois falar sobre algumas figuras ilustres de Gouveia, sobre as quais gosta de conversar e de escrever no jornal da cidade. João Rebocho, poeta, escritor, director da biblioteca municipal Vergílio Ferreira, chega, senta-se e  toma café com os romeiros. Vai ler poesia na Romaria e não esquece a primeira edição. “O impacto foi inesperado e surpreendente, houve uma adesão muito grande das colectividades, das pessoas. É um acontecimento que se transformou numa festa única, enorme. E tudo o que se possa dizer sobre a Romaria é pouco”. Palavras de poeta.

O programa começa a esticar. Os romeiros andam atarefados, mas contentes com o que andam a preparar. Sábado, às nove da noite, a Sociedade Musical Gouveense, com 104 anos de história, dá um concerto na Rua Cardeal Mendes Belo. No ano passado, ouviram-se bandas sonoras de filmes, agora a banda quer pôr todos a cantar músicas que andam na ponta da língua. Fernando Abrantes é o responsável da banda e tem tudo planeado para essa noite. Os elogios saem-lhe naturalmente. “A Romaria foi o elo de ligação do povo. Há muito tempo que não víamos associações a trabalhar no mesmo sentido, a dar as mãos num mesmo projecto”, garante. E deixa um desejo. “A Romaria não pode ser um momento por ano, devia acontecer mais vezes para trazer pessoas à cidade”.

Melão e peixinhos da horta 
Romaria que é romaria tem de ter romaria digna do nome. Domingo, ao final da tarde, os romeiros andarão animados pelas ruas, com músicas, cestos à cabeça, acompanhados por um pequeno rebanho de ovelhas. O rancho tratará dessa parte. Maria Martins, do Rancho Folclórico de Gouveia, revela o conteúdo dos cestos que serão levados à cabeça para uma merenda partilhada em mantas tradicionais. Pastéis de bacalhau, peixinhos da horta, melões, queijos, presunto, chouriços da região, queijo da serra, pão de centeio, arroz doce, garrafões de vinho. Como manda a tradição. Com paninhos de linho e tudo. “Queremos chamar as pessoas a participar na Romaria, inserir a comunidade e trabalhar no sentido de recuperar tradições antigas”. O Rancho Folclórico de Gouveia sabe o que isso é, foi um dos vencedores da primeira edição do programa Tradições Locais e Regionais da EDP Produção com o projecto Gentes com História, Terra de Memórias que contém serões comunitários, ensaios participativos nas aldeias de Gouveia, recuperação e recriação de actividades típicas e ancestrais em risco de desaparecimento. A parceria com a G!O Romaria Cultural é, por isso, muito importante. Maria Martins já nota diferenças. “Quando escurece, Gouveia transforma-se num deserto. Com a Romaria, Gouveia transforma-se numa cidade, vê-se gente, as pessoas aderem. É uma ideia fantástica”.  

Esta romaria também tem dança. O projecto Eu Sou Dança entra no programa com performances de vários estilos. Raquel Silva, professora de dança, anda em ensaios. “A cidade será o nosso palco”. Está tudo pensado para os sete palcos dançantes. Dança contemporânea no jardim, danças urbanas no mercado, dança infantil na Praça S. Pedro. Raquel Silva não entra em pormenores, mas comenta que há um estendal de roupa de dança. A cidadania tem uma costela vincada nesta romaria. O projecto Uma Aventura no Mundo da Cidadania, que discute a cidade com gente de várias idades,  que a vira do avesso, apresenta uma manta de retalhos pela igualdade esta sexta-feira nos Paços do Concelho às 16h00. Um grupo de mulheres do Grupo Aprender em Festa desfia memórias do trabalho nas fábricas têxteis enquanto confecciona uma manta comunitária. A arte de manusear a lã com as mãos, as recordações na cabeça, partilhas que acontecem. Há também idosos que querem contar o que andam a fazer para preservar ribeiras e fontanários das suas freguesias. Sandra Silvestre não é de Gouveia, mas é como se fosse. É romeira e trabalha nesses projectos que dão voz aos gouveenses. Fala com os romeiros sobre a reabertura de uma biblioteca de uma freguesia. E centra-se na Romaria. “Há coisas espontâneas que estão a ser preparadas e que não vão entrar na agenda”, informa. Rui da Eufrázia, presidente do Grupo Aprender em Festa, olha para a Romaria como uma pedra no charco que agitou águas e uma calma instalada, e que obrigou as associações da terra a repensar formas de estar e de actuar há muito incutidas. “O grande desafio foi esse, de provocar o desassossego”. O Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (Cervas), do Parque Natural da Serra da Estrela, volta a entrar na Romaria com uma exposição sobre fauna selvagem e habitats naturais na Casa da Torre e com a devolução de uma águia de asa redonda à natureza no domingo às 19h, no Monte Calvário. Ricardo Brandão, coordenador do Cervas, está satisfeito que a natureza tenha espaço na iniciativa. “A Romaria é um evento fora do comum a nível de variedade de oferta. As ruas da cidade ganham nova vida, é muito interessante, e como serve a comunidade o seu efeito devia ser prolongado”.       

Tradição e modernidade numa garrafa
A ideia da romaria nasceu na cabeça de Sandra Morais, gouveense de corpo inteiro. Inspirou-se nos Jardins Efémeros de Viseu para, explica, “promover a cidade e criar uma dinâmica de forma a atrair mais turistas a Gouveia”. “Durante alguns meses fui fazendo uns rascunhos mentais relativamente ao que queria implementar em Gouveia”, conta. Não tardou a partilhar a ideia de um fim-de-semana cultural para divulgar o concelho e juntar “a tradição e a modernidade dentro de uma garrafa”. Falou com amigos e em dois meses estava cá fora um programa com 69 actividades culturais gratuitas em vários locais da cidade com o conceito “mexer em Gouveia sem mexer em dinheiro”. Tudo à borla com a boa vontade de várias entidades e de amigos e de amigos dos amigos. 

A vontade de “romeirar” não desapareceu. Em Março deste ano, nasceu a GO Romaria Associação Cultural Gouveense e Sandra Morais é a presidente. “A Romaria é de Gouveia e para Gouveia. Essa é a especialidade da romaria: ser transparente e aberta a todos os cidadãos e cidadãs”.

Sandra Morais acompanha esta Romaria à distância. Está a trabalhar em Inglaterra como assistente social, em Portugal dava formação na área de desenvolvimento pessoal, inclusão e integração. Está por dentro de tudo o que se passa. A intervenção no mercado de Gouveia nasceu quando lhe apareceu à frente o mercado de Roterdão nas pesquisas que fazia sobre arte urbana. Fala de um sonho concretizado, de uma marca que ficará para sempre como uma tatuagem. “Este projecto é sustentável porque não desaparece no final da Romaria”.
Joel Correia, arqueólogo, vice-presidente da associação, foi a primeira pessoa a escutar os planos de Sandra e embarcou na aventura. Sabe a História de Gouveia de fio a pavio, fala dela naturalmente quando a conversa se proporciona, e antes da Romaria arrancar não pára mesmo com um trabalho de mestrado à perna. Abre o computador, revê o programa, atende telefonemas, cola cartazes, vai ao mercado ver como andam as pinturas. “Temos uma cidade, ela própria, a contar a sua história”. A estreia da Romaria, em 2014, foi mesmo uma aventura feita sem tostão e com muitas ajudas. A câmara assegurou as licenças e deu apoio logístico, a junta de freguesia pagou os flyers e os cartazes, o Instituto de Gouveia cedeu as refeições e a Escola Agrária abriu as portas para as dormidas. Os romeiros vestiram a pele de DJ e os cachets pagaram as agendas. Este ano, o modelo mantém-se praticamente igual, o programa é mais ambicioso e o orçamento rondará os 2.650 euros, sem contar com a intervenção no mercado. Os romeiros fizeram rifas e conseguiram uma receita de mil euros. Joel acredita no que faz e sabe a força que a cultura tem. “Gouveia não é uma cidade do interior com pacóvios e saloios. Aqui há arte e cultura”. O que importa, sublinha, “é o espírito das pessoas se juntarem e fazerem coisas”. “Não queremos fazer dinheiro, queremos juntar pessoas e ter o máximo de iniciativas que sirvam públicos diferentes e que se cruzem em determinado momento”. E mais do que isso. Explicar às associações locais que têm uma montra para mostrarem os seus projectos que podem ser vendidos por este país fora ou, quem sabe, além-fronteiras.

Às duas da tarde de sábado, começa o primeiro Instameet Serrano com a coordenação de @anitados7oficios e presença de alguns dos Igers portugueses mais reconhecidos. Maria João Carvalho, fã do Instragram, publica com o nome @mjcarvalho, gouveense dos sete costados, fala de um encontro especial. “A grande parte dos utilizadores mais criativos que usam esta aplicação estão por Lisboa ou Porto, pelo que achámos que seria boa ideia não só trazê-los para fotografarem cenas menos urbanas, mas também juntar pela primeira vez Instagrammers que vivam no centro do país”, afirma. Maria João é editora, saiu de Gouveia com 14 anos, volta sempre que o coração pede, tem imenso orgulho nas suas origens, é uma das 11 romeiras. “Sempre me senti como vinda de um sítio especial, rodeada de muita cultura, gente interessante, que obrigava sempre a voltar, além da família, claro. Depois, na adolescência, fomos agrupados num sentimento de orgulho à espanhola, com lenços ao pescoço e tudo. Vir a Gouveia ao fim-de-semana era como ir às festas de S. Fermin”.

Cidade mais envelhecida tem incentivos à natalidade
No final do ano passado, Gouveia apareceu como a cidade mais envelhecida do país no relatório Cidades Portuguesas: Um Retrato Estatístico, com dados de 2011, e que relacionava a população com 65 ou mais anos com a população entre os 0 e 14 anos. A câmara tem vários incentivos à natalidade: 1.000 euros para o primeiro filho, 1.250 para o segundo e seguintes - verbas que têm de ser gastas no comércio local - creches gratuitas até aos 36 meses. Luís Tadeu, presidente da câmara, não faz contas aos gastos nesta área, prefere sublinhar que a natalidade do concelho aumentou 30% entre 2013 e 2014.

A cidade mais envelhecida do país tem uma romaria que abana e mexe na cidade. A G!O Romaria Cultural é bem-vinda para o poder autárquico. “Demonstra que neste interior é possível organizar eventos de grupos que se organizam informalmente”. O autarca garante que esta romaria mexeu na cidade a vários níveis, sobretudo nas mentalidades. A começar pelos comerciantes que nesses três dias têm as lojas abertas até depois da meia-noite. “Há um impacto psicológico que rompeu com o quadro mental que existia”. Mais disponibilidade para a cultura, mais disponibilidade para iniciativas fora do formato. Luís Tadeu assegura que esta romaria não é como as outras. “Tem dois elementos que a distinguem de todas as outras: é da comunidade civil, de malta nova, e envolve a comunidade e as associações locais”.

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