Sistelo: o pequeno Tibete português está em risco

Há quem lhe chame "o pequeno Tibete português" devido aos socalcos que gerações ali esculpiram. Agora, esta aldeia de 300 habitantes às portas da Peneda-Gerês sente-se ameaçada por um projecto de mini-hídrica no rio Vez que lhe pode mudar a paisagem. Empresa promotora diz que o projecto é “o mais ecológico” que já se fez no país.

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A população moldou o relevo para tornar as terras produtivas Nelson Garrido
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Nesta altura do ano, já é de um verde brilhante que se pintam os socalcos de Sistelo. Vista do alto da serra, a aldeia parece ainda mais pequena do que, na realidade, é. As casas tradicionais, os moinhos e os espigueiros perdem dimensão face à imponência daquele vale muito inclinado e encaixado, no fundo do qual corre o rio Vez. É esta paisagem que a população local teme que mude para sempre, caso seja aprovada a construção de uma central hidro-eléctrica junto desta aldeia de 300 habitantes.

Estamos no extremo norte do concelho de Arcos de Valdevez, às portas do Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG). Devido à sensibilidade do território, a aldeia de Sistelo está incluída na Rede Natura e dentro da área classificada pela UNESCO como Reserva Mundial da Biosfera. “Se metem lá máquinas, nunca mais será a mesma coisa”, diz ao PÚBLICO Fernando Cerqueira Barros, que tem sido um dos rostos da contestação à construção da central hidro-eléctrica. Este arquitecto conhece bem o território. É autor da tese Construção do Território e Arquitectura na Serra da Peneda. Padrão (Sistelo) e Suas "Brandas" – um caso de estudo e um apaixonado pelo património arquitectónico e cultural da aldeia.

“Este é um lugar único”, assegura Barros. Em Sistelo, além das questões ambientais, há “um valor cultural e paisagístico” que precisa de ser tido em conta. A aldeia é conhecida sobretudo por causa dos socalcos, exemplo do forma como as populações, durante séculos, ultrapassaram as difíceis condições orográficas para tornarem estas terras produtivas, irrigando-as através de levadas. Esta relação do homem com a montanha e o rio levou, em 2009, a que fosse proposta a sua classificação como Paisagem Cultural Evolutiva Viva. Recentemente, por força do turismo, começou a ser divulgada como "o pequeno Tibete português", uma designação que não é totalmente bem vista pelos habitantes. 

Os impactos deste aproveitamento hidroelétrico do rio Vez sobre a rega são um dos que mais preocupam a população de Sistelo. A falta de água pode comprometer a fertilidade daqueles terrenos trabalhados por gerações e gerações. “As pessoas daqui vivem essencialmente da agricultura. Se, de repente, perdem a água que usam para regar os campos, como podem manter a sua vida?”, questiona Fernando Cerqueira Barros. Caso o projecto seja aprovado, a água do rio Vez e das escorrências das encostas da serra da Peneda será travada por um açude de dois metros de altura, que será construído a montante da aldeia, sendo depois encaminhada para a central hidroelétrica, que fica a uma cota mais baixa, junto à povoação, através de condutas enterradas, numa extensão total de 5,5 quilómetros.

A próxima grande entrada de água no leito do Vez acontece cerca de três quilómetros depois da aldeia, pelo que há receio de que o rio possa secar durante alguns períodos do ano, com impactos a jusante, em moinhos e azenhas ainda em funcionamento e na própria praia fluvial da vila de Arcos de Valdevez. Outras preocupações entre a população são os impactos dos movimentos de máquinas e camiões sobre os caminhos lajeados da aldeia durante a fase de construção da hídrica, a possibilidade de poluição do rio Vez – considerado um dos mais limpos da Europa.

As consequências negativas da mini-hídrica de Sistelo sobre o turismo são os mais destacados pelo presidente da junta de freguesia. “O turismo é a única coisa que nos resta para podermos ter um desenvolvimento sustentável”, sublinha Sérgio Rodrigues. O autarca é abertamente contra um projecto que, para a aldeia, “só tem impactos negativos”.

Este aproveitamento hidro-eléctrico de Sistelo – assim é designado pela promotora – foi proposto pela Hidrocentrais Reunidas, uma empresa com sede em Lisboa, mas que, desde 1991, está ligada ao grupo internacional RP Global, que opera no sector em países como a Geórgia, Peru e Chile. O investimento previsto é de 12,5 milhões de euros e a potência a instalar 10 MW, prevendo-se que sejam gerados 24,7 GWh anuais de energia. Os valores são pequenos quando em comparação, por exemplo, com a barragem de Vilarinho da Furna – também nas margens do PNPG, que nos anos 1970 submergiu uma aldeia inteira – que tem 125 MW de potência instalada e pode produzir quase 190 GWh.

A empresa que propõe a construção desta central desvaloriza, porém, estas preocupações populares. “É o projecto de uma hídrica mais ecológico que já se fez em Portugal”, assegura César Lopes, engenheiro responsável pela obra na Hidroelétricas Reunidas. O açude terá “apenas” dois metros de altura e criará uma “pequena albufeira” de 900 metros quadrados. A estrutura foi desenhada de forma a possibilitar as migrações das espécies que vivem no rio (esta é uma área abundante em truta comum e toupeira de água, por exemplo) e será revestida a pedra da região, para minimizar o impacto visual. O mesmo tipo de preocupações será tido no projecto da sala de máquinas, inspirada na arquitectura tradicional.

Além disso, ao contrário do que é habitual, não está previsto que a mini-hídrica de Sistelo faça retenção de água (será uma hidroelétrica a fio de água), devendo apenas canalizar para a turbina parte da água efectivamente existente no leito do rio. “Ficaremos dependentes das chuvas e haverá três ou quatro meses, durante o Verão, em que praticamente não vamos turbinar”, garante Lopes. Além disso, o projecto “prevê uma reserva de água no caudal do rio, de acordo com os usos e costume da população”, assegura, tentando apaziguar os receios das populações relativamente aos impactos do projecto sobre os sistemas de rega tradicional.

A proposta de construção da mini-hídrica junto à aldeia de Sistelo está em fase de licenciamento pela Agência Portuguesa do Ambiente, estando o estudo de impacte ambiental em discussão pública até esta sexta-feira. Este foi feito entre Janeiro de 2011 e Março de 2012, e publicado em Abril deste ano. O documento admite, por exemplo, que a linha de alta tensão que será necessário construir para ligar a central hidro-eléctrica à Rede Elétrica Nacional, numa extensão de seis quilómetros, vai atravessar, em parte, uma área considerada “crítica para aves de rapina”. No entanto, genericamente, o estudo de impacte ambiental considera não terem sido “identificados valores patrimoniais que possam sofrer impactes durante a fase de construção” e que os impactes ambientais da obra são “maioritariamente avaliados como pouco importantes”.

Apesar das garantias da empresa promotora, a fase de consulta pública tem mostrado o descontentamento da população local. Quando o projecto foi apresentado publicamente, na semana passada, numa sessão na Câmara de Arcos de Valdevez, os habitantes de Sistelo e de outras freguesias do concelho mobilizaram-se, enchendo a sala de gente e de críticas à central hidro-eléctrica.

Nos dias seguintes, a contestação que se gerou motivou a organização de caminhadas em Sistelo, foram criadas páginas nas redes sociais para divulgar as preocupações locais, bem como uma petição online que, na tarde desta quarta-feira, tinha 3500 subscritores, pedindo “às entidades competentes a emissão de um parecer negativo à construção deste aproveitamento hidroeléctrico”.

Esta quinta-feira, a população promete voltar a fazer ouvir a sua voz, com uma manifestação em frente à sede da Câmara de Arcos de Valdevez, ao final da tarde. Por essa hora, a autarquia promete dar a conhecer a sua posição sobre este projecto. “Até agora, a nossa prioridade foi tentar dar-lhe o máximo de visibilidade e envolver as pessoas”, explica o presidente do município, João Esteves, prometendo que a decisão que venha a ser tomada “vai ter em conta as preocupações das pessoas”.

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