Sem coelhos na mira, as armas dos caçadores viram-se para tudo o que mexe

À medida que a população de coelhos bravos vai reduzindo, a mira dos caçadores aponta às perdizes. E o abate de caça maior está a ser feito sem controlo sanitário apesar da ameaça da tuberculose bovina.

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A caça tem vindo a tornar-se uma actividade cada vez mais para elites Enric Vives-Rubio

Há cada vez menos coelhos bravos aos pulos pelo Alentejo. As estirpes da febre hemorrágica I e II e a mixomatose continuam a dizimar a mais importante espécie cinegética. Mas, face aos encargos e custos que os caçadores suportam para terem acesso ao exercício da caça, as armas continuam a disparar, pondo em risco as populações de perdiz vermelha e dando origem ao “terrorismo da carne”.

A designação é de Francisco Derriça Mendes, da Associação de Caçadores de Moura e veterinário municipal nesta autarquia, que assim ilustra o abate quase desesperado de outras espécies para fazer valer a jornada de caça. “Como não se encontram coelhos bravos, a pressão aumenta sobre as perdizes, o recurso cinegético que resta”. O técnico descreve que o caçador “mata para compensar” a ausência dos pequenos ruminantes e a carga de impostos criados pela crise que tem de suportar pelo exercício da caça. “A doença mata o coelho e a caça mata a perdiz”, sintetiza o veterinário.

As populações de coelho bravo são as que “mais suportam as jornadas de caça”, acrescenta Jacinto Amaro, presidente da Federação Nacional de Caça (Fencaça). Reduzindo-se os efectivos cinegéticos, as consequências fazem-se sentir até, na “dispensa de cães”, explica ao PÚBLICO o dirigente associativo, revelando que um caçador “gasta entre 50 a 100 euros por mês com taxas e licenças”. Para agravar a situação, a Associação de Caçadores de Moura diz que a tutela já os informou que vai ser aplicada mais uma taxa de cinco euros por hectare de território abrangido pelas reservas de caça associativas. Face a tão grande despesa, cresce o desespero de todos aqueles que, cada vez que vão para o campo, voltam de mãos à abanar.

Mas se os focos da febre hemorrágica e da mixomatose se estão a revelar muito severos para os coelhos bravos, a tuberculose bovina (TB) nos veados e javalis suscita acrescidas preocupações quando se fala de saúde pública. Só que o “terrorismo da carne” também se está a estender ao sector da caça maior, sobretudo nas reservas de caça turística (RCT), diz Derriça Mendes.

A tradição continua a prevalecer nas práticas feitas em montaria, onde é frequente assistir-se ao baptismo dos caçadores que se iniciam na caça maior colocando-lhes ao pescoço “os pulmões das peças abatidas” que podem estar infectados pela TB.

A situação agrava-se, refere Darriça Mendes, quando “é patente que faltam veterinários” para despistar a TB na zona epidemiológica que abrange os territórios de Idanha, Moura e Barrancos, onde o Ministério da Agricultura e do Mar (MAM) diz existirem os principais focos da doença. O técnico denuncia ainda a comercialização, por atacado, dos efectivos de caça existentes em reservas de caça turística que os proprietários vendem sobretudo a empresas espanholas para que os caçadores daquele país possam abater durante um fim-de-semana.   

O estudo “Avaliação epidemiológica da tuberculose bovina em espécies de caça maior nas regiões do Alto Alentejo e Beira Interior Sul”, elaborado por Pedro Miguel Cunha Caetano para o Departamento de Medicina Veterinária da Universidade de Évora, refere que entre 2011 e 2014 foram abatidos nas referidas regiões 9210 animais, dos quais 5180 veados e 4030 javalis. Das 377 amostras de javali e 296 de veado enviadas para laboratório, 258 e 275, respectivamente, foram consideradas contaminadas com TB.

O estudo vem confirmar de “forma expressiva” a presença de TB em javalis e veados nas áreas geográficas abrangidas. “É ainda importante notar”, refere Cunha Caetano, que os resultados considerados “só se referem às montarias reportadas às Direcções de Intervenção Veterinária”. Não há dados sobre as caçadas organizadas furtivamente. O investigador acredita que se se conhecessem os dados referentes aos actos cinegéticos praticados clandestinamente, “as conclusões seriam ainda mais alarmantes”.

Como o controlo veterinário é deficiente, é possível que aquele que abate uma peça de caça a possa levar consigo e até “vendê-lo inteiro ou em parte para algum restaurante ou, em alternativa, consumi-la com os amigos” sem qualquer controlo sanitário, alerta Derriça Mendes, frisando que há casos em que “os caçadores entram e saem nas montarias de helicóptero”.  

Jacinto Amaro acusa as entidades governamentais de “não terem dado a devida atenção” ao que se passa no mundo da caça, lembrando uma directiva comunitária que exige que “todos os animais” sejam inspeccionados e que as zonas e caça “estejam apetrechadas com uma sala de desmanche” das carcaças.

Acontece que “nem as zonas de caça associativa nem as turísticas têm condições para ter um veterinário, para além de ser difícil encontrá-los”, observa o presidente da Fencaça, assinalando que se está perante um “problema saúde pública que compete ao Estado resolver. E alerta que a “situação está descontrolada nas zonas epidemiológicas” e que há peças de veados e javalis que “entram no circuito comercial sem terem sido inspeccionadas”.

O deputado do PSD, Mário Simões, adiantou ao PÚBLICO que já esteve reunido com as associações de caçadores e que transmitiu ao Instituto de Conservação da Natureza e Floresta as suas preocupações relativamente aos problemas que afectam o sector da caça

O deputado advoga que Governo “tem de se olhar para a caça como um sector estratégico”, desenvolvendo trabalhoa de investigação científica para debelar os focos das doenças que dizimam os coelhos bravos, veados e javalis. E realça a importância desta actividade para a economia e o turismo regionais, para além de ser um “gerador de receita para o Estado”, que Jacinto Amaro calcula em cerca de 10 milhões de euros.

Defende, neste sentido, a criação de um Conselho Nacional Cinegético e de um Conselho Científico, para contrapor à pulverização de responsabilidades distribuídas por uma tutela tripartida (Ministérios da Agricultura, Ambiente e Administração Interna) geradora de legislação que “conflitua entre si”.

O PÚBLICO solicitou ao Ministério da Agricultura um conjunto de esclarecimentos sobre as denúncias apresentadas pelas organizações representativas dos caçadores, mas não foi dada qualquer resposta.

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