Quando a junta não tem dinheiro, estes autarcas é que pagam

Nas freguesias, cujo número o Governo pretende reduzir, ainda há autarcas que põem até a própria remuneração ao serviço da causa pública. Às vezes, sem obterem daí qualquer reconhecimento

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Junta de Airães está só à espera da homologação da carrinha para transportar crianças Paulo Pimenta

"E anda". Brincalhão, Vítor Vasconcelos, o presidente da Junta de Freguesia de Airães, Felgueiras, aponta na direcção da carrinha cinzenta, que acaba de cruzar a rua central da localidade. O veículo foi comprado há poucos dias para assegurar o transporte das crianças que frequentam o centro escolar. Mas para isso os três membros do executivo tiveram que abdicar da remuneração a que têm direito por lei.

Vítor Vasconcelos, António Gomes e Olga Magalhães foram eleitos há três anos pela coligação PSD-CDS. O dinheiro que antes recebiam (274,77 euros no caso do presidente, pouco mais de 200 euros para o secretário e a tesoureira) permite agora devolver cerca de 8500 euros aos cofres da junta, o que chega e sobra para assegurar os 5500 euros que a compra e utilização da carrinha, incluindo combustível e oficina, deverão custar.
 
O negócio, que a junta procurava, "apareceu de repente" e requeria decisão rápida. O orçamento da junta "não chegava" para dizer que sim, justifica o autarca. A decisão foi simples. Airães recebe do Estado, através do Fundo de Financiamento das Freguesias, 39 mil euros por ano, a que se juntam os cerca de 10 mil euros provenientes dos protocolos de delegação de competências assinados com a Câmara de Felgueiras. Mal chega para pagar ao funcionário da junta e assegurar a manutenção do edifício, onde se acolheu o posto de Correios.

A carrinha foi comprada em segunda mão, mas brilha como se fosse nova, em frente à junta e à igreja da freguesia ­- monumento nacional desde 1977, incluído na Rota do Românico. A viatura vai transportar os alunos com prolongamento de horário do centro escolar, também no âmbito de um protocolo com a junta. Entre as 170 crianças desta escola - com turmas desde o pré-primário ao secundário - cerca de 20 chegam à escola às 7h30, uma hora antes do início das aulas, e saem às 19h30, quase duas horas depois de todos os outros. "Estamos numa zona em que a maioria das pessoas trabalha em freguesias das redondezas, sobretudo na indústria de calçado. As crianças têm que vir mais cedo e sair mais tarde das aulas", explica Vítor Vasconcelos. Além disso, Airães é uma freguesia rural de Felgueiras, com um povoamento disperso, apesar de ser a terceira mais populosa do concelho, com cerca de 2500 habitantes.

Pelo serviço de prolongamento de horário da escola os pais pagam 15 euros por mês. O preço não vai aumentar, garante o presidente da junta, ciente das dificuldades das famílias. Para o transporte das crianças arrancar, falta apenas a homologação do serviço, processo que deverá estar concluído antes do início do segundo período do ano lectivo.

O exemplo de Airães é "saudado com muito agrado" pelo presidente da Associação Nacional de Freguesias (Anafre), Armando Vieira. "Felizmente, não é caso único", valoriza o dirigente.

Basta descer os íngremes 20 quilómetros que separam o concelho de Felgueiras do rio Tâmega para encontrar Toutosa, uma freguesia com 559 habitantes do concelho de Marco de Canaveses que recebe 25 mil euros anuais do Estado. "Dão para pagar a água, a luz e o material de escritório", assegura a presidente da junta.

Limpezas e outros serviços

Eleita há sete anos, Isabel Marques continua, formalmente, a receber a remuneração. Mas usa-a para pagar a limpeza do largo central da localidade, para as contribuições para a Segurança Social da funcionária que, duas vezes por semana, assegura os serviços administrativos da autarquia e para os préstimos do outro funcionário que abre e fecha as casas de banho públicas. Os outros dois membros do executivo também abdicavam da remuneração até ao ano passado. "Agora estão desempregados e não podem abrir mão do dinheiro", justifica esta professora de Físico-Química eleita pela CDU.

Foi também pela coligação PCP-PEV que foi eleito o anterior presidente da Junta de Meruge, uma aldeia com cerca de 650 habitantes do concelho de Oliveira do Hospital. Durante 12 anos, João Abreu abdicou do vencimento, um exemplo que todos os eleitos da junta e da assembleia de freguesia seguiram. "Foi assim que conseguimos ter um enfermeiro no posto médico que então existia na junta, durante dois anos", recorda. Mas também foi possível realizar pequenas obras e apoiar actividades sociais ou desportivas, como as escolas de futebol e de natação. Hoje, João Abreu preside à assembleia de freguesia e continua a entregar o valor das senhas de presença nas reuniões a associações locais. O executivo que lhe sucedeu deixou, porém, de abdicar da remuneração. "Questiúnculas de meios pequenos", justifica Abreu. "Havia gente que não acreditava que abdicávamos do dinheiro".

"Inúmeros exemplos"

Apesar de não ter números exactos sobre o número de juntas cujos eleitos abdicam do vencimento, o presidente da Anafre assegura que há "inúmeros exemplos" como estes pelo país. "Vi com os meus olhos uma junta de freguesia do concelho de Freixo de Espada à Cinta ir a uma aldeia de montanha, levar e buscar as crianças para a escola, com carrinhas da junta", ilustra Armando Vieira. Também no Alentejo, havia até há pouco tempo juntas que tinham ambulância para transporte de doentes, prática que o novo regime de transporte de doentes ilegalizou. "São exemplos do trabalho de proximidade das juntas que é fundamental", diz Vieira, lamentando que os decisores nacionais "insistam em descurar" as freguesias.

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