Preocupações com o abandono do Aleixo voltam à boleia do filme Bicicleta

Exibição do filme Luis Vieira Campos esgotou pequeno auditório Rivoli. Moradores dizem que viveram um "sonho" e ganharam uma "excelente recordação" dos tempos em que foram felizes no Bairro.

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Luís Vieira Campos era um homem realizado, no final da estreia no Porto Paulo Pimenta

Entre risos e gargalhadas, entre esgares de incredulidade e ohhhs de surpresa, a exibição do filme Bicicleta realizado por Luís Vieira Campos, e com argumento de Valter Hugo Mãe, teve ainda um outro condão, para alem de provocar todas estas reacções nas plateias que lotaram o pequeno auditório do Teatro Municipal do Rivoli durante três dias seguidos.

A película teve o mérito de voltar colocar em cheio o dedo na ferida: o bairro do Aleixo, no Porto, está mais esquecido do que nunca e os que lá permanecem a viver (depois da implosão de duas torres) estão encurralados, tal como encurralados nos fazem sentir os personagens do filme.

Depois das participações em três festivais (Curtas Vila do Conde, Arquiteturas Film Festival Lisboa e Festival Caminhos do Cinema Português, arrecadando prémios em todos eles) o filme Bicicleta estreou esta semana no Teatro Municipal Rivoli. O pequeno Auditório foi muito pequeno durante três dias seguidos; no primeiro dia para os convidados, nos dois seguintes para o público em geral. Na quarta foi a ante-estreia direccionada para convidados especiais: os moradores do bairro que não se limitaram a emprestar cenários e a fazer figuração, mas que também participaram em castings e ganharam papéis de interpretação. Luísa Ferreira, que mora no Aleixo desde os 8 anos de idade, é uma delas. Em Bicicleta é  Dina, a moradora que vai à janela de Gorete comprar um pacote de arroz por dois euros. Na quarta-feira levou os filhos, os tios e os primos ao Rivoli e diz que saiu de lá “maravilhada”. “Foi óptimo ver o meu bairro no ecrã. Ver-me. Foi uma experiência muito, muito bonita, e uma oportunidade muito grande que deram a pessoas como eu”, relatou por telefone ao PÚBLICO. Mas não foi só a oportunidade de ser actriz por um par de dias que Luísa Ferreira agradece a Luís Vieira Campos. Foi, também, “a oportunidade de mostrar que, como em todo o lado, há no Aleixo gente boa e gente má”.

Luísa esteve no Rivoli na quarta-feira, por isso não ouviu nem o sociólogo (e ex-candidato do Bloco de Esquerda) João Teixeira Lopes, na quinta, nem o geógrafo Álvaro Domingues na sexta, convidados a fazer a apresentação do filme em cada um dos dias. Mas Luísa Ferreira acabou por focar o mesmo aspecto que Álvaro Domingues entendeu sublinhar na sua apresentação: “O Bicicleta não é sobre o Aleixo; é um filme que fala sobre a própria condição humana”. E, no Aleixo, como em tudo, as injustiças vêm com as generalizações.

Luís Vieira Campos era um homem realizado, no final da estreia no Porto. “Sou do Porto, pensei este projecto para o Porto, e para o Aleixo, foi importante mostrá-lo aqui, por isso só posso agradecer ao Rivoli ter inserido o filme na sua programação”, disse ao PÚBLICO. Se durante anos a fio foi visitante do Bairro - “Fui sempre muito bem recebido, nunca houve um único problema com os moradores, sempre nos abriram as portas e nunca nos faltou nada”, relata - está na altura de começar a rarear as visitas. “O desenvolvimento do projeto foi muito demorado. As dificuldades de financiamento, o processo de demolição do bairro… foi tudo atrasando as coisas. As filmagens já foram em 2013, mas eu fui sempre tentando passar pelo Bairro, contar às pessoas como estavam as coisas. Aqui, no Rivoli, fechou-se o ciclo. Mas, obviamente, o Bicicleta vai seguir o seu caminho”, explica o realizador, que é também fundador da Filmes Liberdade. A próxima exibição do Bicicleta será no Passos Manuel, no próximo dia 10, integrada na extensão do Porto do Arquiteturas Film festival organizado pela Milímetro. 

Integralmente filmado no bairro do Aleixo, mais concretamente na torre 3, o Bicicleta expõe as cicatrizes de um bairro que tem vindo a ser votado ao abandono. “Agora mais do que nunca”, diz Vanessa Campos, a mãe da jovem actriz que entra no filme: a pequena Lita, que na vida real se chama Érica Torres, tem hoje 8 anos e não vive no Aleixo há quase dois. Mãe e filha ficaram “felizes da vida” ao verem o filme projectado na sala do Rivoli. “É um filme muito bonito. Mostra bem o que aquilo é. A nós, que vivemos lá tantos anos, diz-nos muito”, diz a mãe. “Porque o bairro está muito abandonado. Agora está ainda pior, com ratos por todo o lado. Prefiro pagar a renda de 200 euros agora na Alfândega, do que continuar a lá morar. Mas tenho pena da minha avó, dos meus tios que ainda lá estão. Ainda na sexta quando lá fui, estava a minha tia a chamar a câmara por causa de uma inundação”. 

O bairro já perdeu duas das cinco torres, e cada uma das três sobreviventes tem o número de moradores reduzido a metade. “Cada torre tinha 65 apartamentos, agora só há gente à volta de 30. Umas estão entaipadas com cimento, outras não têm porta, e é uma ventania…. é uma vergonha. Estamos aqui abandonados. Na campanha eleitoral estão cá todos, depois não acontece nada”, diz Luísa Ferreira, que continua a viver na Torre 1. E, garante, vai sofrer muito quando um dia tiver de sair dali. “O senhor que entrou agora [Rui Moreira] não tem culpa da batata quente. Mas nós também não. E merecemos mais dignidade”, reclama. 

Foi dignidade e simpatia que a actriz Adelaide Teixeira, a “bruxa/beata” Blandina, diz ter encontrado nos moradores. “Não nos faltou nada. Foram todos tão atenciosos. Para nós, actores, também foi uma experiência muito bonita contracenar com eles, entrar na casa deles. Muito boa gente”, garante. Marcos Ferreira, nado e criado no Aleixo, há já 34 anos, ainda tem casa no Aleixo, e é lá que continua a morar toda a sua família. “Este filme foi uma prenda muito bonita que o Sr. Luís [Vieira Campos] nos deu. Vamos guardá-lo como a melhor das recordações, dos tempos em que fomos felizes naquele bairro”. Marcos tem agora uma filha de ano e meio e ja não mora no Aleixo. E diz que lhe quer mostrar o filme para lhe contar como eram as brincadeiras do pai e o bairro em que se fez homem: “Não regávamos a terra para nascerem peixinhos, como a Lita do filme, mas brincávamos com pneus e paus”. E que nem tudo era bonito. O retrato cru trazido pelo enredo de Bicicleta, o da clausura que pode ser viver no 12º andar de uma torre em que o elevador não funciona, não é fantasia nem ficção.  “É verdade ainda nos dias de hoje. A minha avó tem 74 anos, e chega a estar seis meses sem elevador para ir para o décimo primeiro andar”.

O filme de Luis Vieira Campos provoca sorrisos e gargalhadas - “aquelas conversas entre vizinhos, os palavrões que se dizem, é mesmo assim”, garante Marcos. Mas também surpresa e estupefacção - sobretudo na cena final (não se deve contar o fim de um filme), a que ninguém fica indiferente.  “Não há nenhuma grande mensagem de esperança neste filme. Permanece a sensação de orfandade”, avisou Álvaro Domingues. 

Marcos Ferreira insiste que Bicicleta é um retrato fiel do que é e do que foi o Aleixo. A pequena Érica Torres, que contou ao PÚBLICO que no início achou que era difícil decorar as falas, mas que depois gostou muito da experiência, disse que gostava de a repetir. “Espero que quando o sr. Luís fizer outro filme, me chame outra vez”.

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