Porto bairrista vive À Margem da Alegria no Matadouro Municipal

A companhia Ao Cabo Teatro apresenta através do projecto Arquipélago uma peça de teatro comunitário que chama a atenção para as mudanças do Porto.

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Aos actores profissionais juntam-se pessoas de vários pontos do município nfactos/Fernando Veludo
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“Começo pelos outros, que são gente, que são outros, que são gente, mares de gente, rica e pobre, mas sempre gente, sempre quente”. Começam pelos outros, mas percorrem, durante uma hora e meia, as vivências, as experiências, os sonhos, as lutas e as tristezas de cada um dos 22 participantes. À Margem da Alegria é uma experiência de teatro comunitário que está em cena no antigo Matadouro Municipal do Porto. Mas é também uma experiência que se propôs levar a comunidade para o teatro, e não só o teatro à comunidade.  Anabela Pinho, professora de 47 anos, actriz nesta peça, sintetiza: “Exportamos a humanidade para o palco”. É aliás este o objectivo de Nuno Cardoso, encenador, nos projectos a que se dedica: “Quis criar um arquipélago, com grupos de todos os pontos da cidade, que transmitem uma ideia de um Porto paralelo ao Porto mais movimentado”.

A dicotomia entre o Porto urbano e o Porto bairrista é, assim, um dos motes para a peça. Ao longo do espectáculo, alguém faz uma caminhada pela cidade, de transportes públicos, mas no final esquece-se do sítio de onde veio. “Este ser tem um olhar distanciado daquilo que vê pela cidade”, refere o encenador. Dá-se ênfase à crítica social, ao turismo, à forma acelerada e mecânica como se vive na cidade. Critica-se a limitação às máquinas fotográficas, aos mapas, à falta de espontaneidade. Retratam-se bandos de turistas que não aproveitam o melhor do que a cidade tem, que se cingem aos passeios turísticos. Critica-se a marca em que o Porto se tornou, a publicidade, que impede que a cidade respire.

O Porto apresenta-se de formas muito distintas nas interpretações intercaladas dos actores Tiago Sarmento e Micaela Cardoso. A cidade é um ente acelerado, vivo, agitado, que faz alarde da sua sedução que tanto atrai os forasteiros, na voz de Tiago Sarmento, mas transforma-se numa experiência intimista com o desabafo de Micaela Cardoso, que a descreve dando voz aos habitantes, aos que a sentem. Para Nuno Cardoso, “todo o portuense vive a cidade como o outro membro de um casal [do qual ele próprio faz parte]. É ele ou ela e o Porto, e todos partilham essa forma de sentir a cidade”.

A estes actores profissionais juntam-se pessoas de vários pontos do município, que se voluntariaram para participar e que partilham a sua experiência em improvisos, mas cuja vivência também foi a base para a construção do texto. Vê-se gentes das mais variadas idades. As histórias que contam, muitas vezes distintas, confluem num argumento que se liga numa viagem pela nostalgia do passado, pelas experiências do presente. Sobretudo, há a felicidade de participar num projecto que se tornou de todos.

Do Tiago, com 22 anos, até ao senhor Renato, com 94, passando pela D. Lurdes, a D. Eva, Paula, a Sandra, todos têm voz. A D. Maria Alice, com 92 anos, no princípio recusou participar, mas agora já afirma: “Se para o ano houver peça, quero continuar. Gosto disto. Dá-me vida!”. O sentimento é quase unânime. Dos 22 actores, apenas Renato afirma não voltar: “Gostei imenso mas não quero mais responsabilidade, mata-me a cabeça. Foi uma vez para nunca mais”. Renato dá à interpretação uma vivência particular – relata o seu golo pelo Salgueiros contra o Benfica, que fez o clube vencer o jogo. Vibra de cada vez que conta a história, e o público vibra com ele. Mas há também histórias de perda, de nostalgia. Sérgio Moreira, de 42 anos, leva à peça um rap que fez sobre o pai, que já morreu, e da forma como não consegue ultrapassar a saudade. Afirma que encontrou aqui uma forma de lhe prestar homenagem e de se libertar. Há ainda histórias cómicas, como a da D. Lurdes. Descreve a rua dela, a forma como os turistas a invadem, como fotografam tudo o que podem, incluindo bancas de mercado. A “história dos corações de boi”, como lhe chama, leva o público a rir-se com ela, mas sobretudo a reconhecer no relato a forma como os outros invadem a cidade.

A Sandra, de 43 anos, e a Paula, de 44, cabe a viagem pelos centros comerciais da cidade, numa interacção com o público e com os actores cheia de ironia e de crítica social. São amigas desde a infância, o que facilita a forma como improvisam de acordo com o público do dia. Como exemplo, Sandra refere o dia em que o “Dr. Pizarro” [vereador da Habitação Social na Câmara do Porto] foi assistir à peça: “Sabia que conhecia a cara dele, perguntei-lhe se era da política. Quando me respondeu que sim, disse logo que estava farta deles e do Passos [Coelho, primeiro-ministro]. Cansam-me a beleza. Mas aproveitei o improviso, contei-lhe logo que tinha sido posta fora de casa, edital colado na porta. No final fui falar com ele, disse que não estava a brincar. Ele percebeu. E disse-me para lhe ligar”.

Os actores aproveitam assim o espaço como forma de catarse. Libertam-se, ao mesmo tempo que chamam a atenção para problemas sociais, como a fome, a exclusão social, a doença. A D. Lurdes refere, a este propósito: “Na minha infância, sentia a solidariedade humana, o ajudar o outro. Agora não há isso. A vizinhança não é a mesma”.

Mas em À Margem da Alegria os actores são como bons vizinhos – conversam, dançam, brincam, desabafam. Ajudam. Naquilo que o encenador descreve como “uma espécie de Éden” em que cada um trouxe um bocado de si à peça, não só com os testemunhos, mas também com o cenário. “Temos bocadinhos das casas deles, construímos um puzzle”, diz.

Nuno Cardoso considera que “foi um projecto feliz”. “Cruzamo-nos todos, damos uma visão do Porto que não é doce, mas é a nossa [do grupo] ”, explica. À Margem da Alegria estará em cena nos dias 16 e 17, no antigo Matadouro Municipal. A entrada é gratuita, mas sujeita a reservas. Na última semana, foi Renato a dar o apito final, ao marcar mais um penálti. Esta semana o fim da peça não terá o mesmo protagonista, mas a mesma certeza- que todos sairão a festejar, numa ode ao Porto bairrista que, lamentam, se esteja a perder, e que ali recordam e aclamam com a alma de um verdadeiro portuense. 

Texto editado por Ana Fernandes

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