Por uma reforma razoável das freguesias

Nem o furor de fazer a “grande revolução” das freguesias nem a inércia própria do deixar andar.

A reforma territorial das freguesias precisava de um melhor debate público. Os prazos que estão a correr são demasiado curtos. Entre as muitas questões, que deveriam ser tratadas com o cuidado devido, estão as seguintes: o que são freguesias na organização administrativa portuguesa? Qual a situação actual deste nível territorial da nossa administração local? Que papel lhes deve competir no futuro?

No espaço de um artigo de jornal o contributo para esse debate não pode ir mais além do que a apresentação de alguns tópicos. Quanto à primeira questão deve esclarecer-se, desde logo, que a tradição administrativa portuguesa é municipal e não paroquial. As freguesias (entidades religiosas) entraram na nossa organização administrativa em 1830 e durante o século XIX foram por várias vezes questionadas, chegando a escrever-se que foi “ infeliz a experiência que se fez” de elevar a administração da paróquia à categoria de administração civil (José Dias Ferreira, 1892). No entanto, o mesmo ministro dizia que elas estão “profundamente radicadas nos costumes do país” e, dentro de limitados poderes, correspondem a uma “verdadeira necessidade pública”.

 As freguesias efectivamente não são municípios e só se compreendem, tendo em conta que a dimensão territorial destes, que decorreu da notável reforma ocorrida em 1836, permitiu criar grandes municípios, ao contrário do que sucedeu no resto da Europa, deixando espaço para um nível administrativo inframunicipal. Repare-se que ainda hoje existem mais de 36.000 municípios na França e mais de 8.000, quer em Espanha, quer em Itália.

Porém, deve ter-se em conta que não cabe às freguesias exercer as tarefas dos municípios, competindo-lhes antes tarefas mais leves, de baixo custo, ligadas à proximidade com as pessoas. É neste contexto que deve compreender-se que as freguesias não devam ser demasiado grandes em território e população, confundindo-se com municípios, mas também não devam ser demasiado pequenas, pois doutro modo não podem levar a bom termo as tarefas que a lei põe a seu cargo. Freguesia demasiado pequena é família e não entidade político-administrativa, como costuma dizer, o ilustre administrativista Francisco Sosa Wagner, criticando o excessivo número de municípios em Espanha.

Quanto à situação actual da administração ao nível das freguesias dificilmente se compreende que não se tenha feito o respectivo levantamento. Importava saber, para fazer uma boa reforma, que freguesias temos em concreto e como estão a funcionar. Estão elas regularmente organizadas? Cumprem devidamente as suas tarefas? Os órgãos (assembleia e junta) têm as suas reuniões periódicas e fazem as devidas actas? Têm as suas contas bem escrituradas? Têm pessoal de apoio para executar as tarefas meramente burocráticas? Como estão do ponto de vista financeiro? Qual a relação que têm com as populações respectivas? Qual a diferença que há entre as freguesias em ambiente urbano e as freguesias em ambiente rural? E as diferenças entre as pequenas e as grandes freguesias? Quantas estão inscritas na Associação Nacional de Freguesias (ANAFRE)?

No que respeita finalmente ao papel que lhes deve competir, importa articular bem a administração dos municípios e das freguesias, cada uma dentro dos seu âmbito e com a sua autonomia, observando o princípio constitucional da subsidiariedade e trabalhando ambas para o mesmo fim: o melhor serviço público às populações locais. Para os municípios devem reservar-se as tarefas mais exigentes ligadas nomeadamente ao ordenamento do território e ao urbanismo, ambiente e saneamento básico, vias de comunicação e transportes e, cada vez mais, educação e saúde. São tarefas que exigem recursos humanos altamente qualificados (engenheiros, arquitectos, juristas, economistas e muitos outros técnicos superiores), equipamentos de grande porte e elevados recursos financeiros. As freguesias devem, por sua vez, exercer tarefas menos exigentes em recursos humanos e financeiros, sob pena de duplicação de níveis de administração territorial, mas não menos importantes, ligadas aos problemas do dia-a-dia de uma comunidade local e com larga incidência na qualidade de vida das pessoas.

Nunca se fez em Portugal uma reforma territorial das freguesias e ela deve fazer-se pois muitas coisas mudaram desde há 180 anos, nomeadamente no que respeita ao assentamento da população, mas deve fazer-se com a necessária cautela. Nem o furor de fazer a “grande revolução” das freguesias nem a inércia própria do deixar andar. Diminuir o número de freguesias, mesmo que seja em algumas centenas, nomeadamente no que toca às pequenas freguesias e ao redimensionamento das urbanas, procurando reunir o maior consenso possível, é já fazer uma reforma muito significativa da nossa administração local autónoma. Importa, depois, acompanhar a sua execução e estudar o funcionamento efectivo deste nível de administração para depois, com rigor e dando passos mais largos e seguros, continuar a reforma, enquadrando-a no âmbito mais vasto dos diversos níveis territoriais da nossa administração pública.

Professor Universitário

Sugerir correcção
Ler 1 comentários