Os Hospitalários são um teatro e o Mosteiro de Leça é o actor principal

Nona edição da feira Hospitalários no Caminho de Santiago termina hoje em Matosinhos. Ponto alto é recriação do casamento de D. Fernando com Dona Leonor Telles no Mosteiro de Leça do Balio.

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Fernando Veludo/NFactos

Costuma ser o ponto alto do certame “ Os Hospitalários no Caminho de Santiago”, a feira medieval que termina hoje, pelo nono ano consecutivo, junto ao Mosteiro de Leça do Balio, em Matosinhos: a recriação histórica do momento em que último rei da primeira dinastia de Portugal, D. Fernando, se casou com a pouco apreciada pelo povo D. Leonor Telles.

É um misto de orgulho - foi a primeira vez que um monarca desafiou as regras e se casou com quem amava e não com quem lhe impunham  - e de preconceito (D. Leonor, “A Aleivosa” por ser considerada desleal, traiçoeira, ambiciosa). Este ano não deverá ser diferente. A meio da tarde, no palco instalado perto das mesmas paredes onde os monarcas se casaram há 642 anos, os actores vão recriar esse casamento histórico que acabou por estar na origem da primeira crise dinástica portuguesa. E prevê-se uma nova enchente. “Tem sido vinte e cinco a trinta mil pessoas por dia”, contabiliza o vereador da cultura da Câmara de Matosinhos, Fernando Rocha. 

Desde quinta feira, altura em que abriu ao público esta nona edição de Os Hospitalários no Caminho de Santiago, que o largo do Mosteiro de Leça do Balio se tornou num palco gigantesco, por onde passam almocreves e falcoeiros, gaitas e tambores, cavaleiros e malabaristas, artesãos e mercadores. E peregrinos. Muitos peregrinos em direcção a Santiago de Compostela. 

Se há séculos atrás os frades hospitalários recebiam e acolhiam os peregrinos de Santiago, dando-lhes agasalho e alimento, lavando-lhes as feridas e estendendo-lhes palha enxuta para passarem a noite, hoje em dia não há ordens religiosas, mas os peregrinos continuam a chegar. Ontem mesmo, estava previsto passar pelo mosteiro uma delegação de 180 peregrinos que, de facto, estão a fazer o caminho de Santiago, e que acabaria por dar ainda mais verosimilhança a todas as encenações.

Feiras medievais, são como os chapéus: há muitas, de norte a sul do país. E se estas fossem um circuito de automóveis, podemos dizer que o esforço da autarquia é de ter nos certame os pilotos de Fórmula 1. Daí a data escolhida, findas as férias e os turistas do mês de Agosto, e apostar na diferenciação permitida pelo lugar único e irrepetível que é o Mosteiro de Leça do Balio, palco do casamento régio mas também casa mãe dos hospitalários, uma Ordem Religiosa e Militar que prestava apoio aos peregrinos que rumavam a Santiago de Compostela. “É essa ligação do passado com o presente, e da importância que ainda hoje este percurso tem nas peregrinações a Santiago, que nós queremos promover com este certame”, argumenta o vereador.

Na antevéspera da celebração do casamento real, a uma sexta-feira à tarde, e de propositadamente a uma hora onde é possível circular com tranquilidade e atentar melhor nos pequenos grandes pormenores com que se recria o ambiente medieval, Pedro, de 9 anos, passeia-se com a tia junto à exposição das máquinas de tortura medievais, cedidas pela Câmara de Penedono. Pedro sabe pouco de reis e rainhas, mas gosta das espadas e dos guerreiros que às vezes vê na televisão. “Para o ano vou começar a ter História. É importante começar a conhecer estas coisas”, diz. Não sabe da importância que acabou por ter  na história do país o casamento que ali se iria encenar, mas ele, que até não mora muito longe (vive em Ermesinde) e até já visitou outros castelos - o de Guimarães e o de Santa Maria da Feira (“também já fui à Viagem Medieval") estava muito empenhado em pedir à tia se seria possível visitar o mosteiro e subir até à sua torre ameada. “Esta igreja parece um castelo!”

Folias em contexto
Dar um contexto às crianças que lhes permita enquadrar no tempo tudo aquilo que estão a ver é um dos maiores desafios para quem participa nestes eventos. A começar pela crueldade humana exposta nas máquinas de tortura e a terminar nas recriações dos autos-de-fé, com heréticos a enfrentarem acusações em praça publica e a serem chicoteados ou condenados à morte. Um grupo de alunos de um ATL de Leixões, com crianças de idades entre os 4 e os 10 anos, assistiu a uma dessas encenações, e era possível distinguir entre eles os mais sensíveis. Manuel, de 5 anos, demorou a acreditar que era uma brincadeira, e pediu inúmeras confirmações de que o cinto estava a a bater no palco e não na “mulher herege”, apesar de ter visto com os seus olhos que ela, afinal, não tinha morrido esganada, já que estava ali a falar com ele. Havia também os mais teatrais, aqueles que, finda a peça de teatro, subiram ao pequeno palco para simular lutas e castigos, e para empunhar espadas contra armaduras imaginárias.

“Os guerreiros que se aproximam da minha banca têm sempre que cumprir as regras e ouvir as minhas explicações”, diz Maria João Figueiredo, uma das artesãs que está no recinto do mosteiro a vender dessas espadas. Um exemplo: “A espada é feita para proteger a família e não para a atacar”. Outro: “No meio da multidão não se pode brincar com arco e com a flecha”. Outra ainda: “As bestas não estão estragadas, são mesmo assim, difíceis de montar, de propósito”. Porque se querem decorativas e se deseja que sejam um brinquedo, um adereço, e nunca uma arma de arremesso. O companheiro, Sérgio Silva, foi quem idealizou as lâminas de madeira das espadas. Maria João assumiu a função de as decorar. “Somos artesãos. Estamos aqui a mostrar como as fazemos. Não somos mercadores, que compramos a uns para vender a outros. Temos muito orgulho no nosso trabalho”.

Entre artesãos e mercadores, há mais de 200 vendedores envolvidos nesta feira medieval, onde a componente gastronómica ocupa, também, um papel fundamental. Andam a cirandar pelo recinto outras duas centenas de figurantes a abordar os presentes com as suas recriações. “Vimos de Aveiro e vamos para Compostela. Parámos em Leça do Balio para descansar. Amanhã seguimos caminho”, diz Jackas, actor do  grupo de teatro para Infância Arlequim e também membro do Museu do Brincar, de Vagos, que trouxe companhia para dar a conhecer às crianças alguns dos seus “Contos Peregrinos”.

Com um investimento de 160 mil euros, o que acontece durante quatro dias junto ao Mosteiro de Leça do Balio é, pois, uma interminável peça de teatro, onde o templo desempenha o papel de actor principal. Não admira que o principal desejo de Pedro seja conhecer-lhe as ameias.

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