O último alfarrabista de Faro fechou a loja, mas os livros não se perderam

Carlos Simões, um militante das letras, não resistiu a uma acção de despejo, mas continua a vender raridades bibliográficas numa banca, na baixa da cidade.

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Apesar das vendas não terem corrido bem em Setembro, Carlos Simões mostra-se satisfeito por ser um resistente numa cidade com tradição nesta área DR

Começou esta semana a operação de desmantelamento da livraria Simões, pertencente ao último alfarrabista de Faro. Dois meses depois da ordem de despejo da loja, decretada pelo Tribunal, o acervo está a ser transferido para as bibliotecas da Universidade do Algarve e do município. Carlos Simões, de 72 anos, foi asfixiado pelas leis do mercado e deixou de ter condições para pagar uma renda de 700 euros mensais. Resultado: foi posto na rua, fechou a porta, agora vende livros numa banca montada na rua.

O reconhecimento público do trabalho deste alfarrabista, desenvolvido ao longo de três décadas, aconteceu em 2013. Nesse ano, o município atribuiu-lhe a “medalha de mérito” da cidade, por ser o “único alfarrabista” de Faro, mas também pelo facto da livraria Simões, situada na rua do Alportel, ser “uma referência em todo o país”. Porém, as palmas e os agradecimentos que recebeu nessa cerimónia, diz, não saldaram a dívida de cerca de 30 mil euros devidos por rendas em atraso. No passado dia 28 de Julho, quando os agentes da PSP e dois oficiais de justiça o intimaram a abandonar a loja, deu por terminado o seu percurso profissional. “Não havia nada a fazer, só pensei em paz e sossego a partir daquele momento”, recorda. Mas não foi o que aconteceu — continua a trabalhar, embora noutros moldes.

Por trás de uns óculos de lentes grossas, Carlos Simões mostra um brilhozinho nos olhos quando fala da sua paixão pelas letras “Sou míope, porque lia muito na juventude”, justifica. Natural de Oliveira do Hospital, órfão, passou a infância e parte da adolescência em colégios da instituição Bissaya Barreto. “Cheguei a levar uma pilha para a cama, onde lia os livros debaixo dos lençóis”, conta. Em Faro, abriu uma livraria e passou a dedicar-se à encadernação e à pesquisa das raridades bibliográficas. Tudo parecia correr bem até chegaram as grandes superfícies onde tudo se vende — não apenas frutas e legumes, mas também livros, a preços convidativos. À concorrência, Simões respondeu há seis anos — ainda que a título experimental — montando banca de venda de livros, na baixa da cidade, numa das ruas mais movimentadas, frente ao edifício da CCDR/Algarve. Uma vez desalojado da livraria, e ultrapassada a fase crítica, reforçou a presença nesse espaço. Com a sua característica boina preta na cabeça, surge todas as manhãs, a mostrar algumas obras que, no mínimo, despertam curiosidade. Na parte da tarde, recebe os clientes num armazém, situado na Praceta do Rodolfo (próximo do Hospital de Faro). “Continuo a ter pessoas que me procuram a oferecer bibliotecas, e tenho paixão por isto”, sublinha, explicando assim as razões porque não desiste.

Isaura dos Santos, de 78 anos, aproxima-se dos livros, expostos na rua, dá uma olhadela e pergunta: “Por acaso tem O Principezinho? A obra, da autoria de Antoine de Saint-Exupéry, ficou-lhe na memória e a leitura, diz, fá-la regressar a outros mundos. A professora, reformada, fica na conversa, a discorrer à volta dos livros. Simões mostra-se satisfeito. “Estou a verificar, não apenas pelo interesse desta senhora, que há uma nova geração de leitores — pessoas que, por qualquer motivo, não tiveram oportunidade de conhecer (ou leram à pressa) certos livros, e agora vêem à procura”, diz. A isto chama a passagem do testumunho. “As universidades seniores têm contribuído para incrementar a leitura e os avós estão a transmitir esse gosto aos netos”, sublinha. Mas com as novas tecnologias, as crianças não estão mais viradas para o livro digital? “A experiência diz-me o contrário — o livro em papel vai ser cada vez mais valorizado, porque todos os sentidos de uma pessoa são tocados no acto da leitura”.

O presidente da Câmara, Rogério Bacalhau, prevê que o trabalho de recolha e selecção das obras da livraria Simões, a cargo de uma equipa conjunta da Universidade do Algarve e do município, “ainda irá levar algum tempo”. Carlos Simões reconhece que a tarefa não deverá ser fácil, uma vez que no registo informático constava a existência de 70 a 80 mil livros, mas calcula que na totalidade tivesse em seu poder umas 800 mil publicações. “Veio ter comigo e fez a doação, sem pedir nada em troca”, diz o autarca, reconhecendo a importância do gesto. Por outro lado, Simões mostrou-se satisfeito pelo facto do senhorio ter considerado liquidada a dívida a partir do momento em que deixou a loja: “Não devo nada”. Na montra da antiga loja, ainda de encontra um anúncio: “Temos o livro que há muito procura”.

Apesar das vendas não terem corrido bem em Setembro, Carlos Simões mostra-se satisfeito por ser um resistente numa cidade com tradição nesta área. “Foi aqui, em Faro, que se imprimiu o primeiro livro em Portugal, em 1487”, evoca. No mês do regresso às aulas, acrescenta “a compra dos manuais escolares obrigou a uma encolha total das famílias, tive pouca procura em Setembro, mas Julho e Agosto deram para liquidar todas as contas pendentes”, enfatiza. Isaura dos Santos volta à conversa: “Gostava de comprar o Dicionário do Falar Algarvio. O livreiro anota o pedido, recorda o autor, Eduardo Brazão Gonçalves, e fica a promessa: “Vou arranjar”.

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