O teatro da loja de ferragens

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Quando António Lucas abre a luz da cave da Casa Achilles, temos aquela sensação de que os museus vivem uma vida própria quando não estamos lá e, quando dão pela nossa chegada, as peças voltam a correr para os seus lugares e imobilizam-se, silenciosas mas de olhos muito abertos e com os corações de pedra e metal a bater, na esperança de que nós não reparemos em nada.

De dentro de uma caixa, espreita, melancólica, uma cabeça de águia que um dia terá adornado um braço de uma cadeira, e, quem sabe, terá sido afagada por muitas mãos durante conversas nervosas ou pacíficas. À volta dela espalham-se flores também de metal. Numa prateleira, alinham-se ameaçadoras garras de leão, com as unhas e os pelos cuidadosamente desenhados, libertas já do peso dos móveis de estilo que sobre elas descansaram. E, logo abaixo, bustos clássicos, alguns com ar egípcio, feições finas, cabelos elegantemente penteados — peças de adorno de cómodas, provavelmente.

Encostadas a uma velha caixa de madeira estão três mulheres gregas de longas túnicas drapeadas que, com gestos delicados e indolentes, penteiam-se e ajustam as jóias. Os cabelos apanhados atrás caem com naturalidade sobre os pescoços, e as linhas ondulantes das túnicas acompanham os movimentos dos corpos.

É uma peça pequena de decoração de móveis, mas, como muitas outras guardadas nesta cave, é feita com um detalhe exaustivo. António Lucas, sócio-gerente da Casa Achilles, tenta explicar que o valor deste trabalho está precisamente na qualidade dos moldes, e que a colecção que se guarda nesta casa fundada em 1905 é, a esse nível, excepcional. “Temos talvez cinco séculos de moldes dos grandes estilos europeus”.

Vista de fora ninguém adivinha, mas a Casa Achilles — uma das fundadoras do projecto Lojas de Carácter e Tradição de Lisboa, uma iniciativa do Fórum Cidadania Lisboa para preservar este património em risco da cidade — é um labirinto de pequenos espaços cheios de tesouros. António Lucas era cliente e, quando percebeu que a casa corria o risco de desaparecer, decidiu que isso não podia acontecer.

Hoje o trabalho de fundição já não se faz aqui, apesar de no chão ainda se poderem ver as marcas do local onde antigamente estavam os fornos que derretiam o latão em bruto, vazado depois para as formas. A Casa Achilles serve essencialmente para os acabamentos — as oficinas originais e o material de trabalho continuam exactamente como no início do século XX — e local de atendimento ao público. E funciona como um museu, que pode ser visitado (António Lucas tem todo o gosto em fazer visitas guiadas a todos os que desejarem) e que revela um mundo que conhecemos mal.

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A Casa Achilles, Rua de São Marçal 194, Lisboa. ?Aberta de segunda a sexta-feira, das 10h às 19h

“Temos em Portugal artistas fantásticos”, diz o nosso anfitrião, enquanto explica que uma parte essencial deste trabalho é a criação do molde. Quanto mais minúcia e detalhe este tiver, maior é a qualidade do produto final. Depois, há a arte da cinzelagem, que dá o acabamento à peça até à mais escondida prega numa túnica clássica.

Fechamos as luzes na pequena cave e subimos até às oficinas. “Até há oito, dez anos, havia aqui pessoal a trabalhar”, conta António Lucas. “Agora é como se os actores tivessem saído de repente”. E, de facto, os instrumentos de trabalho estão em cima das grossas mesas de madeira, como se esperassem que, a qualquer momento, os operários entrassem outra vez pela porta. Encostado a uma das paredes está um anexo com as paredes feitas de quadrados de vidro. Não é difícil imaginarmos um operário a bater num desses vidros, chamando a atenção do gerente, que lá dentro, no seu pequeno escritório, toma nota à mão, em letra desenhada, das encomendas, das despesas e dos lucros, à luz fraca de um candeeiro iluminando a enorme secretária de madeira que, juntamente com um armário-ficheiro, ocupa praticamente todo o espaço. 

E a ideia de que este é o cenário de uma peça sem os actores faz ainda mais sentido quando descobrimos que o fundador da loja era também um grande admirador de teatro. António Lucas entra em mais uma sala deste pequeno labirinto e tira de uma prateleira um empoeirado livro com edições encadernadas do Jornal dos Teatros dos anos 1920 e 30. No cimo de algumas das páginas vê-se um anúncio antigo: “Achilles Santos Frias. Com oficinas movidas a electricidade. Ferragens antigas para móveis em todos os estilos.”

Regressamos à entrada da loja, a que António Lucas deu um ar mais parisiense, com um grande espelho e quadros mostrando a enorme variedade de modelos de ferragens, douradas e brilhantes. Será que, entretanto, lá em baixo, no escuro da cave, a quadriga guiada por uma figura clássica tocando lira se lançou já numa corrida louca, largando pelo ar o anjinho nu que tentava agarrar-se a ela, enquanto, na sua caixa, a águia melancólica lançava mais um longo bocejo?

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