O “estranho caso” da torre de Lisboa que “não pára de crescer”

O cálculo da edificabilidade atribuída ao promotor da torre que vai nascer na Fontes Pereira de Melo e o recurso à figura dos créditos de construção continuam a levantar dúvidas na assembleia municipal.

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Um edifício com 17 andares vai nascer na zona de Picoas DR
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O Estranho Caso de Benjamin Button, personagem da literatura e do cinema que “nascia e depois ia ficando cada vez mais novo e encolhendo”, e depois há “o estranho caso da torre da Fontes Pereira de Melo”, que “a todo o tempo vai crescendo, ganhando pisos e área”.

A comparação foi feita pelo BE na Assembleia Municipal de Lisboa, órgão no qual deputados de vários partidos manifestaram dúvidas sobre o processo que envolve o licenciamento da construção de um edifício com 17 andares em Picoas.  

Aquilo que estava em discussão na assembleia era a proposta camarária (que acabou por ser aprovada por maioria) de consagrar à reabilitação de edifícios de habitação no Bairro Padre Cruz, na freguesia de Carnide, uma verba de 2,774 milhões de euros. Esse é o valor que o município prevê arrecadar com a venda de créditos de construção ao promotor do projecto imobiliário que vai ser desenvolvido no gaveto da Avenida Fontes Pereira de Melo com a Avenida 5 de Outubro.

Globalmente, os deputados manifestaram a sua concordância com essa intenção, mas não deixaram de verbalizar as dúvidas que têm relativamente à maneira como foi calculada a edificabilidade atribuída ao promotor (17 mil m2) e à forma como lhe foi permitido que fizesse essa edificabilidade crescer de duas formas: através da atribuição pela autarquia de créditos de construção pela “integração de conceitos bioclimáticos e de eficiência na utilização dos recursos e da eficiência energética nos edifícios” (mais 2300 m2) e da venda de créditos de construção no valor de 2,774 milhões de euros (mais 3900 m2).

A essas dúvidas, alguns deputados acrescentaram outras, relacionadas com o facto de a um anterior proprietário do terreno em causa ter sido transmitido pelo município, em 2011, que não poderia construir no local mais do que de 12.377 m2, em sete pisos acima do solo, caso apostasse em comércio e serviços. Uma situação que o PÚBLICO já noticiou e cuja diferença face à situação actual a câmara tem justificado com a entrada em vigor, em 2012, de um novo Plano Director Municipal (PDM) e de um regulamento municipal de “incentivos a operações urbanísticas com interesse municipal”.

Essa explicação não convenceu o bloquista Ricardo Robles, que usou a comparação com a história do personagem interpretado no cinema pelo actor Brad Pitt para defender que se assiste aqui a um “estranho caso” de uma torre que “ainda não saiu do papel mas não pára de crescer”. Considerando que este processo “é fruto da política urbanística do executivo, fruto do PDM [Plano Director Municipal] e respectivos regulamentos”, o deputado lamentou que o presidente da Câmara de Lisboa “assine por baixo” aquilo que o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, decide.

Também Victor Gonçalves questionou vários aspectos deste processo, nomeadamente o facto de se ir permitir um aumento de edificabilidade com base num critério (o de valoração de conceitos bioclimáticos e de eficiência na utilização de recursos e de eficiência energética nos edifícios) que só trará benefícios para quem vier a trabalhar na torre e “não para a comunidade”. “É para valorizar o prédio, é uma forma de marketing”, afirmou o deputado do PSD, acrescentando que isso não respeita “o espírito” com que a assembleia municipal aprovou o regulamento que prevê a atribuição de créditos de construção.

Pelo PEV, Sobreda Antunes disse, referindo-se ao facto de a receita com a venda de créditos ir ser aplicada na requalificação do Bairro Padre Cruz, que “apesar de a intenção ser boa” o seu partido não pode aceitar que tal seja feito “com recuso a estas negociatas”.

Já Fábio Sousa, que preside à Junta de Freguesia de Carnide, fez saber que o PCP não se sente “minimamente confortável com a ausência de resposta” a algumas das questões levantadas, mas lembrou que o investimento naquele bairro municipal “não só é útil e necessário, como é bastante urgente”. “O bairro precisa de ser acarinhado, de um olhar diferente, precisa que o processo de regeneração em curso não fique suspenso”, afirmou.

Presente na reunião da assembleia municipal que se realizou esta terça-feira, o deputado independente Nunes da Silva não usou da palavra, mas do parecer que a Comissão de Ordenamento do Território produziu sobre este tema constam várias pergunta suas sobre “o modo como foi definida a edificabilidade” atribuída pela câmara ao promotor. Perguntas que já no fim da discussão o autarca disse ao PÚBLICO que não considerou que tivessem ficado esclarecidas com a intervenção de Manuel Salgado.

Nessa intervenção, o vereador do Urbanismo afirmou que o terreno em causa “não foi entregue ao BES”, mas sim “ao Fundo Flit, que pertence a todos os bancos nacionais e no qual o Novo Banco tem uma participação de cerca de 10%”. “Já estou vacinado quanto a essa matéria”, disse ainda, referindo-se a dúvidas que têm sido levantadas quanto a eventuais favorecimentos seus ao BES, acrescentando que é “primo direito” e “amigo” de Ricardo Salgado.   

Em defesa da proposta camarária surgiu também o socialista André Couto, que defendeu que o executivo usou neste processo os meios de que dispõe “de forma transparente e legítima”. O autarca sublinhou que os deputados municipais têm “uma função política, e não técnica”, não lhes competindo portanto “estar a fiscalizar cálculos” feitos pela câmara. 

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