No Bairro Alto, os jornais deram lugar a pólos de cultura

Três edifícios que pertenciam a jornais. Um é teatro. Outro já foi. E o terceiro está vazio mas são muitos os planos.

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A rua Luz Soriano foi sempre morada dos jornais Bruno Almeida
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Impressão do último Diário Popular Luísa Ferreira/Arquivo

Foi no Bairro Alto que se concentraram os principais jornais, no século XX. Décadas depois, resta apenas um, A Bola. Muitos dos edifícios vazios receberam nova vida, outros continuam à espera de que alguém olhe por eles.

A rua Luz Soriano foi sempre morada dos jornais. Aí estavam sedeados o Diário de Lisboa e o Diário Popular. Hoje, a imprensa produzida nesta rua de Lisboa faz, unicamente, parte da história. O Diário de Lisboa fechou em 1990 e o Diário Popular um ano depois, deixando os grandes edifícios por ocupar.

Em 2011, Alexandre Oliveira, João Botelho e António Pires andavam à procura de um espaço para ser a casa da sua companhia. Tinham já uma produtora — a Ar de Filmes, que desenvolvia projectos de cinema e teatro — e precisavam de um espaço para ensaiar as suas peças. Encontraram mais do que isso. Um edifício grande e espaçoso, outrora ocupado pelas rotativas do Diário Popular, e ficaram encantados.

“Descobrimos este espaço enorme da Interpress e percebemos que o responsável pela empresa era o engenheiro Gonçalves Pereira. Era uma pessoa que estava à espera de uma proposta artística para aquele espaço e foi assim que apareceu o Teatro do Bairro”, recorda Alexandre Oliveira.

Mais do que um espaço para ensaiar, o grupo criou um pólo cultural, onde o teatro, o cinema e a música convivem de forma harmoniosa. “A sala foi pensada para existir uma polivalência. Há espectáculos às 21h, que tanto podem ser de cinema ou de teatro e, nas noites mais fortes, às quintas, sextas e sábados, temos uma programação nocturna virada, sobretudo, para concertos”, explica o director do Teatro do Bairro.

O edifício viu, assim, nascer um projecto cultural que, apesar de tudo, ainda conserva um pouco da história do jornal. “As escadas do teatro foram feitas a partir da desmontagem de uma ponte com grades que havia antes para a circulação do ar. Praticamente todo o ferro que existe lá resultou de um aproveitamento do que já existia”, refere Alexandre Oliveira, acrescentando que o plano é fazer um espaço “baseado numa arquitectura industrial”, tendo como referência “a noite de Berlim”.

Para o responsável, o Teatro do Bairro é uma aposta ganha graças aos cerca de 20 mil espectadores por ano. O director explica que a ideia deste projecto teve como referência outras experiências já realizadas no Bairro Alto. “No edifício da Capital, o que os Artistas Unidos desenvolveram foi uma experiência que para nós foi interessante e deu para perceber que existia público para o que queríamos fazer”, refere.

Os destinos d’A Capital
Foi em 1999 que Jorge Silva Melo, um dos fundadores da companhia de teatro “Artistas Unidos”, passou pelo edifício do jornal A Capital, já extinto, na Travessa do Poço da Cidade. O grupo de actores estava sem espaço para ensaiar há seis meses, vivia com subsídios muito pequenos e até já tinha pensado em fechar actividade.

“Estava uma porta aberta, entrei e achei que aquilo era um espaço curioso. Pensei: ‘Isto é a nossa grande salvação’”, conta Jorge Silva Melo. “Era um edifício que tinha quatro andares, em que conseguíamos fazer, em muitas salas pequenas, vários espectáculos ao mesmo tempo e agregar a nós outras companhias”, explica.

O grupo de actores contactou a empresa de Francisco Pinto Balsemão “SoJornal”, que detinha o prédio, e descobriu que este iria ser vendido à Câmara de Lisboa. Os Artistas Unidos apressaram-se e fizeram um acordo com a empresa e a autarquia, na altura liderada por João Soares, para ocupar o espaço provisoriamente.

Mudaram-se em Novembro de 1999 e no início do ano seguinte estreavam as primeiras peças. Durante dois anos e meio fizeram cerca de 30 espectáculos diferentes e acolheram outros projectos de dança, teatro e cinema. Os bilhetes eram sempre baratos e atraiam curiosos que, por vezes, nem sabiam qual era o espectáculo a que iam assistir.

Até que chegou o dia 29 de Agosto de 2002, que Jorge Silva Melo classifica como “um dos dias mais estranhos” da sua vida. “Eu estava dentro da câmara numa reunião com a vereadora da Cultura, a tratar da verba que a autarquia iria dar para fazermos as obras de intervenção para resolver as questões de segurança do edifício. E, quando saio, telefonam-me a dizer que estava lá a polícia municipal para fechar aquilo”, recorda.

Até hoje, Jorge Silva Melo não entende concretamente o que se passou. Acha que foram guerras internas da autarquia e, desde então, o edifício está desocupado. Para aquele espaço está programada a construção de um silo automóvel que, até agora, ainda não foi iniciado. “Já não passo lá. Faz-me muita impressão. Acho que aquilo cortou muitas esperanças que eu tinha de uma Lisboa mais simples”, desabafa o actor.

A história repete-se
A passagem dos Artistas Unidos pelo Bairro Alto nunca foi esquecida por quem lá vive. Influenciou o Teatro do Bairro, que ocupou o antigo edifício do Diário Popular, e agora o Lisboa Clube Rio de Janeiro, que se prepara para se instalar no antigo edifício do jornal Record, na rua da Atalaia.

A colectividade, formada em 1928, desenvolve actividades recreativas, como as Marchas Populares do bairro, bailes, teatro, aulas de dança e actividades desportivas, como atletismo, boxe, ginástica e futebol. Além disso, desde o Verão do ano passado, distribui refeições aos mais pobres, tendo até ao momento servido cerca de 50 mil jantares, que recolhe em vários restaurantes de Lisboa.

O clube é bastante importante no bairro e envolve nas suas actividades, aproximadamente, 200 pessoas de todas as idades. No entanto, esteve em risco de fechar. “Recebemos uma acção de despejo”, conta o presidente Vitor Silva. “Nós pagávamos uma renda de 109 euros. O senhorio queria 2500, mas nós não temos capacidade para pagar”, refere.

Sem hipótese de suportar este aumento, Vitor Silva temeu pelo fecho do clube. No entanto, após contactar a câmara e a junta de freguesia conseguiu resolver o problema. O clube assinou um protocolo com a autarquia. “Conseguimos estabelecer um acordo e vamos transitar para o espaço do Record. O jornal tinha um edifício muito grande, no qual vamos implementar todas as actividades”, explica o presidente. “Vai ser possível desenvolver uma quantidade de coisas que não conseguimos fazer aqui. O teatro, o cinema, a escola de fado e o posto médico”, afirma Vitor Silva.

No entanto, apesar de já ter o espaço há quatro meses, o clube ainda não se mudou. “Posso fazer daquele edifício um pólo de interesse para a cidade de Lisboa. As ideias estão na cabeça. Estou entusiasmado mas, ao mesmo tempo, frustrado, porque não sei se vou conseguir lá chegar”, explica o presidente, que se encontra à procura de financiamento.

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