Crise não afasta visitantes de Mértola, que já é referência no turismo cultural

Passou de lugar pobre a importante centro de investigação sobre o mundo mediterrânico. Mas, à medida que cresceu o número de turistas, a histórica vila-museu perdeu mais de metade da população.

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Mértola atrai investigadores e recebe entre 25 a 30 mil visitantes por ano, 65% dos quais portugueses Enriv Vives-Rubio

Ao longo dos últimos 35 anos, o concelho de Mértola sofreu uma profunda revolução social e cultural: perdeu a condição de vila pobre, habitada por gente privada das mais elementares condições de vida, para se transformar num importante centro de investigação sobre o mundo mediterrânico, com projecção internacional. No mês passado abriu mais um núcleo museológico, justificado por um turismo que se mantém pujante, mesmo em anos de crise.

É o resultado do trabalho desenvolvido pelas equipas lideradas pelo arqueólogo Cláudio Torres, fundador e director do Campo Arqueológico de Mértola (CAM) e Prémio Pessoa em 1991, e das opções dos sucessivos executivos municipais que se materializa hoje na instalação de 12 núcleos museológicos. Tem um centro universitário onde se desenvolve um trabalho de parceria com as universidades de Coimbra, Faro e Évora, e que faz deslocar até ao Campo Arqueológico de Mértola investigadores e especialistas para adquirirem conhecimentos ou consultarem a sua biblioteca com 70 mil volumes, a maior do país sobre a cultura islâmica.

A par do turismo cultural que leva a Mértola visitantes com exigências específicas, casais, pequenos grupos de pessoas “que sabem ao que vêm”, refere o arqueólogo, chegam os entusiastas do turismo ornitológico, vindos sobretudo do norte da Europa e até da América para observar a águia-imperial-ibérica, abetardas, grifos, sisões, melros-azuis ou peneireiros-das-torres, a que se juntam os praticantes da canoagem e do remo e fervorosos adeptos da caça cinegética. Este conjunto de valências turísticas traduz-se na visita de 25 a 30 mil pessoas por ano, oriundos de Portugal (cerca de 65%) mas também de Itália, Bélgica, Suíça, Brasil, Dinamarca, Canadá, E.U.A, e países do Leste da Europa.

Quando Cláudio Torres rumou a Mértola em 1977, ao volante do seu Volkswagen “carocha”, o seu primeiro contacto com a comunidade local foi bastante constrangedor. A sensação que recorda, descreve ao PÚBLICO, foi de “um certo cheiro a miséria” que habitava nas suas casas, praças e ruas.

“Vi famílias numerosas, muita miudagem” e o quotidiano de um bairro chamado “favela” com “gente amontoada nas casas muito degradadas, fome, mas ao mesmo tempo muito calor humano”, recorda o arqueólogo que para ali foi depois de aceitar o desafio do seu aluno, Serrão Martins, que acabara de ser eleito presidente da Câmara. Naquele ano, a população residente superava os 13 mil habitantes. Em 2013 pouco passava dos 6 mil, colocando Mértola como um dos concelhos do Alentejo em que a densidade populacional é das mais baixas.

A palavra turista não fazia parte do linguajar local. “Só ia a Mértola quem tinha de ir”, descreve Torres, mas a localidade já era um “sítio mítico” diz, frisando que “não foi por acaso" que foi até à vila alentejana erguida num morro junto ao Guadiana com um porto fluvial a 70 quilómetros do mar e um passado histórico que se revelaria importante.

Quando iniciou as escavações arqueológicas, Cláudio Torres estava longe de imaginar a progressão das descobertas que iriam revelar uma história multifacetada, partilhada por vários povos, culturas e religiões. A população olhava incrédula “os gajos que andavam à cata dos cacos” sob a inclemência de um calor tórrido acima dos 40 graus durante semanas e um pó que se impregnava nas roupas e nos corpos. Que “raio de mania era aquela que motivava estudantes e professores a revolver a terra, em vez de irem para a praia”, questionavam. Que vontade motivava gente vinda de fora para viver e trabalhar numa terra pobre?

Entretanto, toma corpo um paradoxo que acabou por se revelar comum a todo o interior alentejano. “O jovem de Mértola quer ir embora da sua terra formatado por um sistema de ensino que promove a cultura urbana e estigmatiza o mundo rural”, diz Cláudio Torres. Apesar de ali ter sido instalado um pólo da escola de formação profissional Bento de Jesus Caraça, onde os formandos adquirem conhecimentos inclusive em turismo e património, o certo é que “acabam por ir embora”, refere, fragilizando o tecido social e económico do concelho e obrigando o CAM a ir “buscar jovens fora da terra”. Premonitório, admite que dentro de 30 a 40 anos “haverá em Mértola outro tipo de população”. Há investigadores já com filhos nascidos na vila museu.

O relatório elaborado pela Câmara de Mértola em 2012 com dados estatísticos relativos aos visitantes e à evolução das estruturas de apoio aos viajantes destaca a importância do património e o incentivo ao turismo, concluindo que estas valências “são o principal elemento agregador e potenciador do desenvolvimento local”, mesmo em tempo de crise económica.

O documento revela que o ano de 2010 (25 mil turistas) corresponde a um “importante acréscimo” no número de visitantes, com grande afluxo de grupos, estando o valor quase equiparado ao ano de 2001 (26 mil visitantes). O impacto da crise económica fez-se sentir apenas no ano de 2011, altura em que, apesar da realização do Festival Islâmico, se registam menos 1800 visitantes que em 2010, um decréscimo que ronda os 7%.

Serrão Martins, vereador da Câmara de Mértola e filho do presidente que convidou Cláudio Torres, garantiu ao PÚBLICO que apesar das dificuldades económicas em 2012 e 2013, o número de pessoas que visitaram a vila museu "oscilou entre 25 e as 30 mil”, que “justificam plenamente” a abertura, em Março, de mais um núcleo na torre de menagem do Castelo de Mértola.

A projecção nacional e internacional alcançada pela vila alentejana, resultante da valorização patrimonial existente no concelho, “é indiscutível”. Embora haja “muito menos população” e a crise se traduza em “menos verbas” para o orçamento municipal, a realidade social e económica em Mértola “é, hoje, completamente diferente, para melhor, da que existia no tempo do meu pai” assinala o autarca.

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