Uma das mais importantes cidades romanas do país ameaçada por framboesas

Mais de 14 hectares de estufas estavam a ser instalados em plena REN, no local onde se situava a cidade romana de Balsa. Parque da Ria Formosa aprovou o projecto, mas ele não podia ser executado sem autorização de outras entidades. Promotores espanhóis garantem que o parque não os informou disso.

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Críticos do projecto temem que os fertilizantes das framboesas venham a afectar o ecossistema da ria Enric Vives-Rubio

A instalação de uma grande área de estufas para produção de framboesas no concelho de Tavira foi parcialmente embargada no passado dia 30 pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDR). A exploração agrícola estava a ser montada na Quinta da Torre d’Aires, uma propriedade de 43 hectares localizada na freguesia da Luz, junto à Ria Formosa, onde se situou a cidade romana de Balsa e onde ainda existem abundantes vestígios arqueológicos. 

O embargo incide apenas sobre 14,8 hectares que estão incluídos na Reserva Ecológica Nacional (REN), numa zona classificada como Faixa de Protecção ao Sistema Lagunar. Os responsáveis pelo empreendimento - proprietários da Surexport, uma das principais empresas espanholas de produção de frutos vermelhos, com sede na província de Huelva - obtiveram no início do Verão um parecer favorável do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), do qual depende o Parque Natural da Ria Formosa, mas não solicitaram a necessária autorização de outros organismos com competências nessa área. O gerente da empresa, Ignacio Márquez, garantiu porém ao PÚBLICO que ninguém os informou de que o projecto tinha de ser igualmente aprovado por outras entidades.

Iniciados em Setembro, os trabalhos de terraplanagem dos terrenos — que abrangem não apenas os 14,8 hectares incluídos na REN, mas também outras àreas — prosseguiram com a montagem das estruturas metálicas que suportarão as coberturas de plástico das estufas, em forma de túnel, e com a instalação da rede de rega. Foi uma cidadã francesa residente em Tavira, Bénédicte Travaux, quem deu o alerta, preocupada com o impacto paisagístico do “mar de plástico branco” que estava a caminho. Entre as suas preocupações avultavam também as consequências para a própria Ria Formosa do funcionamento, naquele local, de uma unidade de agricultura intensiva e de grandes dimensões.

O movimento então desencadeado, com reclamações enviadas a várias entidades e uma petição na internet, levou à intervenção do Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR (SEPNA), da Direcção Regional de Cultura do Algarve e da CCDR. No início de Outubro, o SEPNA fez uma primeira fiscalização no local, levantando um auto de notícia por contraordenação, motivado pela realização de trabalhos ilegais na REN.

Mais tarde, no dia 30, o presidente da CCDR, David Santos, proferiu o despacho de embargo de todos os trabalhos em curso nessa área de 14,8 hectares, considerando que a instalação das estufas configura “usos e acções interditos” na REN. “Face à sensibilidade ecológica da zona e para cumprimento do ‘princípio da prevenção e da precaução’”, David Santos determinou “o embargo e a cessação imediata de todos os trabalhos, obras, acções ou usos que não foram precedidos de controlo prévio”. O despacho do presidente da CCDR concede à Lusexport — a empresa arrendatária dos terrenos criada pelos donos da Surexport em Portugal e responsável pelas obras embargadas — um prazo de 30 dias para repor o terreno no estado em que se encontrava e remover as estruturas ilegalmente erigidas.

O auto de embargo foi transmitido ao representante da empresa por um representante da CCDR, dois elementos do SEPNA e uma técnica da Direcção Regional de Cultura que também têm estado a acompanhar o processo. O despacho da CCDR não faz, porém, qualquer alusão a eventuais restrições ao projecto motivadas pela instalação das estufas em espaços de importância arqueológica, coincidentes com a área em que se localizam os vestígios de Balsa.

Na propriedade existem três sítios classificados como imóveis de interesse público, devido aos testemunhos físicos de Balsa que ainda não foram destruídos, e grande parte do terreno está inserido nas respectivas zonas especiais de protecção. O arqueólogo Rui Parreira, director de Serviços de Bens Culturais da Direcção Regional de Cultura, disse ao PÚBLICO que estes serviços só foram chamados a emitir um parecer depois de surgirem queixas relativas à remoção das terras. 

“Cada entidade pronuncia-se apenas sobre a sua área de competências”, afirmou, referindo-se ao ICNF, ao qual os promotores submeteram o projecto por ele estar inserido no Parque Natural da Ria Formosa. O parecer do ICNF foi favorável, mas falta saber se o documento esclarece os promotores quanto ao facto de não poderem iniciar os trabalhos sem autorização da CCDR e de outros organismos. A 13 de Outubro, o PÚBLICO dirigiu aos responsáveis do parque várias perguntas sobre o assunto, que até agora não tiveram resposta.

A Lusexport garante que nada lhe foi dito, mas os seus sócios estão convencidos de que conseguirão, sem grandes dificuldades, obter as autorizações em falta. “Estamos a regularizar a situação e esperamos estar a colher framboesas em Maio”, disse Ignacio Márquez, adiantando que ali serão criados “cerca de 150 postos de trabalho”.

De acordo com Rui Parreira, “os promotores pediram um caderno de encargos” para saber o que é que poderão fazer e é esse documento que está a ser preparado, com o objectivo de garantir a salvaguarda dos vestígios da cidade romana. Das três zonas ali classificadas como imóvel de interesse público, acrescentou, só uma fica dentro da exploração. Não obstante tudo o já se conhece sobre a  Balsa, sublinhou, “ainda não foi feito um trabalho sério, e a sério, sobre a importância desta cidade romana invisível”.  

Além das restrições financeiras impedirem as prospecções arqueológicas que se impõem, o dono da propriedade “nunca permitiu uma abordagem cientificia” do sítio. Quanto ao impacto visual das estufas, o arqueólogo reconhece que ele será negativo, mas sublinha que “a paisagem cultural não está protegida”.  

Por outro lado, o director regional de Agricultura do Algarve, Fernando Severino, diz que o projecto não teve o parecer dos seus serviços por não implicar financiamento público. No entanto, os serviços foram chamados a pronunciar-se depois de o assunto se ter tornado polémico, tendo concluído que a maior parte da exploração se encontra “dentro do perímetro de rega do sotavento algarvio”. Nesse sentido, a única condição posta foi a apresentação de um plano de recuperação de drenados provenientes da exploração por se tratar de uma zona vulnerável ao risco de contaminação dos aquíferos e da própria ria Formosa.

Balsa era das mais importantes cidades romanas do país. Descoberta em 1866, só na década de 70 foi alvo de estudo mais aprofundado. Um dos arqueólogos que estudou o local nessa altura, e autor do relatório técnico, Manuel Maia, disse à Rádio Renascença que não há nada comparável no território nacional: “Conímbriga ao pé daquilo é uma pequena cidade de província... Mesmo Lisboa era mais pequena. Balsa era uma super cidade portuária”. Mas escasseiam medidas de protecção.

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