Como pode um edifício salvar uma cidade, ou parte dela?

Em Newcastle, um centro cultural mudou a face da cidade. No Porto, o antigo matadouro é apontado como âncora da regeneração de Campanhã.

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Antigo matadouro municipal chegou a ser posto à venda pelo Município do Porto durante a gestão de Rui Rio Fernando Veludo/nFACTOS

Ironia das ironias, o antigo matadouro do Porto está livre da morte. A Câmara do Porto já anunciou que quer instalar ali, em Campanhã, o antigo Museu da Indústria. Há um plano mais ambicioso ainda por revelar, e o vereador da Cultura da cidade, Paulo Cunha e Silva, afirmou numa conferência sobre Arte, Espaço Público e Transformação Urbana que neste edifício, que esteve para ser vendido e cedido à especulação imobiliária, se vai afinal consumar a política que ele vem propondo, “de uma cultura para os cidadãos, não para os agentes culturais”.

Mas pode um edifício salvar uma cidade, ou parte dela? A “casa da música” de Newcastle, o centro Sage-Gateshead, completou o ano passado uma década de funcionamento e de transformação, cultural, mas também social, de uma região no Nordeste de Inglaterra que entrou no século XXI em crise profunda, e a precisar de se reinventar. O caso foi apresentado no Porto como um bom exemplo de como a grande arquitectura - o edifício foi o primeiro equipamento cultural desenhado por Norman Foster - aliado a um exigente, e abrangente, programa, pode mudar a envolvente.

Segundo uma das impulsionadoras do projecto e antiga responsável pelo Programa de Ensino e Participação deste centro, Katherine Zeserson, em Newcastle o segredo terá passado pela aliança entre um edifício marcante e de qualidades acústicas excepcionais, o poder da regeneração urbana - a margem do rio entre as cidades de Gateshead e Newcastle, onde se localiza o Centro, tornou-se uma zona de eleição - um programa de concertos, nas múltiplas áreas musicais, atraente para múltiplos públicos, e o envolvimento da população da região na aprendizagem e na própria criação artística.

Entre obra e financiamentos, foram investidos em dez anos 250 milhões de libras no Sage-Gatheshead, mas, nessa mesma década, as múltiplas actividades ali realizadas geraram 300 milhões. Cerca de seis milhões de pessoas visitaram o centro, onde se realizaram 4500 actividades, e mais de 2000 empregos foram criados. Por cada libra de dinheiro público ali colocado, este equipamento gerou 3,63 libras. E os habitantes da região identificam-se com o projecto. Na componente de ensino, a receita conseguida foi cinco vezes superior à inicialmente estimada, e a utilização das várias salas para conferências foi quatro vezes maior do que o admitido no plano de lançamento deste centro.

Para Katherine Zeserson, este é um excelente exemplo do papel que a arquitectura, e a cultura, podem ter na cidade. E o Porto conhece bem essa importância, pelo impacto que o Museu de Serralves ou a Casa da Música - que aliam a assinatura de arquitectos de renome a projectos culturais de grande qualidade - têm nos públicos locais e regionais e no turismo também. O vereador Paulo Cunha e Silva, que já defendera que o Porto está bem servido com os espaços e equipamentos de que dispõe, disse ter a expectativa de que o Mercado do Bolhão, depois de reabilitado, se torne numa âncora da zona mais antiga, e apontou para o matadouro um papel semelhante, na mais deprimida freguesia do Porto, carente de uma operação - ou operações - de regeneração urbana e social.

Nesta conferência de Serralves, organizada pela Bienal de São Paulo, Jordi Pardo, um dos rostos da revolução urbana que mudou Barcelona desde os jogos Olímpicos de 1992, apontou a educação e a cultura como a “forma mais poderosa” de reabilitar uma cidade, socialmente falando. Crítico da arquitectura-espectáculo, sem programa e sem relação com a envolvente, o actual membro do painel de selecção e monitorização das capitais europeias da cultura considera que ela, a cultura, deve estar presente em toda a cidade, numa aproximação ao conceito de liquidez que Paulo Cunha e Silva vem propondo no Porto, com programas como o Cultura em Expansão, entre outros.    

Aos poucos, a cidade performativa vai chegando aos seus limites mais orientais. Em 2013, numa iniciativa privada de uma ex-vereadora do município, Manuela Monteiro, antigos armazéns de mercadorias, perto da estação de caminho-de-ferro, foram transformados no dinâmico Mira - Espaço Cultural. A partir dele, gente que não vive em Campanhã, entre eles muitos artistas, têm levado ali o seu trabalho e, noutras actividades, descoberto este antigo pólo industrial da cidade, onde das fábricas só sobram os cascos, alguns, e muitas memórias. Pela sua história, oferecer a esta zona o Museu da Indústria fará todo o sentido, e é já uma espécie de dois em um, que salva dois patrimónios deixados ao abandono: as peças do antigo museu, fechadas há anos num armazém de Ramalde; e um matadouro que os arquitectos classificam como uma catedral. E dentro de dias se saberá o que mais se pode ainda fazer com este tesouro.

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