Comerciantes do Mercado do Rato surpreendidos com cedência do espaço à EMEL

Mercado ainda tem ocupantes mas nenhum foi avisado de que terão de sair para dar lugar ao parque de estacionamento.

Fotogaleria
Mercado fica escondido na Rua Alexandre Herculano, atrás de um discreto pórtico Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Imóvel está aberto desde 1927 Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Entre os comerciantes resistentes há um vendedor de bacalhau, de 76 anos, que está no Mercado do Rato desde 1985 Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Os talhantes já abandonaram o mercado Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Um snack-bar e um restaurante são os negócios que chamam mais clientes, sobretudo ao almoço Rui Gaudêncio
Fotogaleria
A peixaria já está desactivada desde o ano passado Rui Gaudêncio
Fotogaleria
Edifício principal do mercado acusa os anos sem manutenção, com paredes descascadas e o tecto que deixa entrar chuva Rui Gaudêncio

Ninguém lhes disse nada. Não sabem quando têm de sair, nem se lhes vão pagar para deixarem o local onde trabalham há dezenas de anos. Para os sete vendedores que resistem no Mercado do Rato, a notícia da cedência do espaço à Empresa de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL), aprovada pela Câmara de Lisboa na quarta-feira, foi uma desagradável prenda de Natal.

“Desactivado? Se isto estivesse desactivado nós não estávamos aqui a pagar renda”, reclama um comerciante, em resposta ao vereador Carlos Moura (PCP), que utilizou esse argumento para justificar o aval dado à cedência do imóvel com vista à construção de um parque de estacionamento. A proposta, apresentada pelo vereador Manuel Salgado, foi aprovada com o voto favorável dos comunistas, do PS e dos Cidadãos por Lisboa (eleitos nas listas socialistas) e a oposição do PSD e do CDS-PP.

Já nesta quinta-feira, depois de perceber o erro, Carlos Moura culpou Salgado. “Foi ele que nos disse que o mercado está desactivado, fomos vítimas de uma informação incorrecta.”. E acrescenta: “A única solução que pode existir, se a câmara insiste no parque, é a indemnização dos vendedores.”

Mas no mercado poucos querem ouvir falar de indemnizações, convictos de que não há dinheiro que compense o abandono dos negócios que os sustentam. “Sei lá para onde é que eu vou depois, eu não sei estar em casa”, desabafa a dona Felícia, de 80 anos, a vender roupa no Rato há 40. Pelo menos até esta quinta-feira, ninguém lhe disse que ia ter de deixar o sítio onde passa os dias.

A desactivação total do mercado esteve marcada para Março de 2013, já depois de muitos comerciantes – em tempos chegaram a ser cerca de 200 – terem deixado o espaço, visivelmente degradado. Agora, a peixaria está vazia e os talhos também. Mas as compensações propostas pela câmara não convenceram sete resistentes, que foram ficando, sem data para sair. “Desde então nunca mais vieram falar com a gente”, diz um deles.

Além da loja de roupa da dona Felícia, existe uma loja de bacalhau, uma banca de fruta e legumes, uma padaria e uma loja de vinhos, um snack-bar e um restaurante – que à hora do almoço costumam encher com os trabalhadores daquela zona central da cidade. “São eles que asseguram isto”, diz uma funcionária. Cliente do mercado há 60 anos, Idália Duarte, de 80, só pede que não o fechem. “Façam o parque mas deixem aqui os comerciantes”, sugere.

O velho mercado aberto desde 1927, escondido na Rua de Alexandre Herculano por trás de um discreto pórtico, acusa os anos sem manutenção. “Está a ver o tecto? Veja lá quanto chove aqui”, mostra o vendedor de bacalhau, apontando para uma grande “barriga” no tecto de madeira que sucumbiu ao peso da água da chuva.

Às paredes descascadas e rachadas juntam-se falhas na electricidade. “A câmara gastava aqui luz clandestinamente”, acusa uma vendedora, para depois explicar que recentemente a EDP foi lá instalar um contador de fraca potência. “Metade do mercado ficou sem luz. Às cinco da tarde não temos luz para ir à casa de banho.” Há um mês, o mercado foi assaltado. “Ficámos a saber que o alarme está desactivado há mais de um ano e ninguém nos disse nada. Agora, a câmara diz que a responsabilidade é nossa”, critica uma comerciante, que paga perto de 400 euros de renda mensal. “Estão a tentar vencer-nos pelo cansaço”, acusa.

Nos últimos meses, os comerciantes viram entrar e sair várias pessoas que diziam ter projectos para revitalizar o local. O presidente da Junta de Freguesia de Santo António, onde fica situado o mercado, também tinha uma ideia. Ou melhor, “tem”. “Não vou abdicar de um projecto que é estruturante para a freguesia”, garante Vasco Morgado, acrescentando que a câmara sabia das suas intenções.

O objectivo do autarca é criar um espaço "virado para a família", mantendo a venda de legumes e fruta e uma zona de restauração, e ainda uma zona infantil e outra com novos artistas e micro-empresários. “Quero fazer com que as pessoas queiram vir ao mercado e ficar”, explica, esclarecendo que não seria investido dinheiro público. “Já tive reuniões com potenciais patrocinadores.” Mas para isso a junta teria de ficar responsável pelo espaço. “Pedimos isso aquando da revisão administrativa, mas não conseguimos”, lamenta.

Vasco Morgado também critica a "falta de coerência" da câmara, colocando mais estacionamento no centro da cidade, num local próximo de outros parques cuja ocupação, garante, é baixa. "Não temos nada para os lisboetas que moram na cidade, mas a câmara está mais preocupada com quem cá vem e vai embora ao final do dia", afirma.

Ao lado do mercado já existe uma zona de estacionamento em terra batida, com uma cancela avariada há vários meses. Com a cedência gratuita do terreno - uma parcela de 8363 metros quadrados, cujo valor de mercado ultrapassa os dois milhões de euros - à EMEL será construído um parque de dois andares, com 310 lugares, dos quais 70 ficarão reservados a residentes por uma assinatura mensal de 100 euros, 10 serão para comerciantes por 120 euros por mês e 20 para o público por 150 euros por mês. O posto de limpeza urbana que existe no edifício do mercado será relocalizado mas vai manter-se naquele perímetro.

O valor do direito de superfície do imóvel é de 1.083.598 euros e está previsto um investimento de 4.205.400 euros para a construção do parque, segundo o contrato-programa que será assinado entre a câmara e a empresa pública de estacionamento.

O novo parque será “fundamental para assegurar, sobretudo naquela zona da cidade, uma maior mobilidade, estacionamento e acessibilidade urbana, permitindo aos munícipes e, fundamentalmente, residentes e comerciantes (locais) a satisfação das suas necessidades”, lê-se no documento.  

A reformulação do mercado tradicional estava prevista no Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente, que determina a instalação de "actividades de comércio, serviços e equipamentos públicos", bem como de um parque de estacionamento público. Para Vasco Morgado, nada impede que o parque de estacionamento seja construído no subsolo, mantendo o mercado a funcionar nos moldes que sugere. É essa a proposta que leva à reunião com o vereador Duarte Cordeiro, responsável pelos mercados, marcada para Janeiro.

Sugerir correcção
Comentar