Mesmo aos 500 anos o Bairro Alto não pára de se reinventar

A sua fama é a noite e o imaginário ainda é o dos jornalistas e artistas, mas o Bairro Alto está vivo e a mudar, apesar de continuar transgressor e imperfeito. Hoje faz anos.

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A livraria e editora Gatafunho abriu em Janeiro deste ano Bruno Almeida
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Restaurante Cuba a la Vista Bruno Almeida
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Tattoo Studio Bruno Almeida
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Montanha shop e Galleru Bruno Almeida
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A Fábrica dos Chapéus abriu em 2008 Bruno Almeida
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Montanha shop e Galleru Bruno Almeida
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Bruno Almeida

Era novo e começou por vender pentes, mas não ganhava muito. Por isso, Mário Ventura decidiu-se pelas fotografias pornográficas. A venda de jornais eram a sua cobertura para negociar imagens de uma revista sueca, para não levantar suspeitas junto das autoridades. “Conseguia vender muitas – enquanto um pedreiro ganhava 60 escudos, eu fazia 2000 por noite”, conta. Aos 69 anos, este homem já fez de tudo um pouco no Bairro Alto, em Lisboa. Trabalhou numa mercearia na Rua da Barroca, que já não existe, e na Adega Mesquita, a primeira casa de fados do bairro.

Desde então, a zona evoluiu e mudou muito. Ficou irreconhecível. As camaratas, onde Mário viveu durante algum tempo, desapareceram, assim como os espaços agrícolas “Havia uma vacaria onde é o Bar Nélson”, recorda. E a população e quem ali passa também mudou. O Bairro Alto celebra neste domingo os 500 anos da sua fundação. Por ali passaram jesuítas, nobres, marinheiros, prostitutas, jornalistas e artistas.

Mas foi sobretudo a partir do século XIX que as ruas começaram a encher-se de jornais. Com eles vieram as tascas, os artistas e o bairro acolheu as actividades que lhe dão fama até aos dias de hoje.

Se os dias do bairro são pouco agitados, o mesmo não acontece com as noites. A dinâmica da noite nasceu com as rotinas jornalísticas de então. Ao contrário de outros serviços ou empresas, os jornais fechavam tarde e os seus profissionais saíam e não regressavam às suas casas – ficavam pelo bairro, a conviver.

Mas não foi só esta dinâmica que tornou o Bairro Alto um espaço da cidade especial. As características morfológicas fizeram com que ali se polarizassem as actividades ligadas à cultura. “Se não tivesse ruas estreitas e se não tivesse a ausência de praças no interior do bairro, a apropriação do espaço era diferente”, considera Pedro Costa, professor do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), de Lisboa, e que desenvolveu uma investigação em torno do Bairro Alto.

De facto, no centro do bairro não existe uma única praça, o que lhe confere, segundo o arquitecto Hélder Carita, uma certa privacidade. “No interior é privado e as relações mais urbanas e contactos exteriores fazem-se na sua periferia, características que estão muito relacionadas com a instituição aqui dos jornais”, explica.

“De bairro central da produção passa para bairro central do consumo”, adianta Pedro Costa. “Havia artes performativas e visuais que eram criadas aqui e que, depois, foram substituídas por outras, como as lojas de roupa cara, galerias e antiquários”, diz.

Para o investigador, esta diferença explica-se pela “gentrificação“, um conceito da sociologia que se refere ao processo de transformação dos espaços quando estes começam a tornar-se moda e a ganhar valor imobiliário.

“Há um aumento daquilo que é a marca do bairro. As pessoas começam a frequentar o espaço e a procurá-lo para viver. E aquilo que são as actividades mais culturais tem tendência a sair”, explica o investigador que aponta como motivo as elevadas rendas que estes negócios não conseguem suportar e o facto de serem actividades alternativas, para as quais o “estar na moda” pode ser negativo.

Mas outros permanecem no Bairro Alto. Já depois do 25 de Abril, em 1981, Fernando Fernandes e José Miranda criavam o restaurante Pap’Açorda. Em 1982, Manuel Reis fundava o Frágil. E de seguida muitos outros negócios começaram a surgir. Bares, restaurantes, lojas de roupa e decoração. O bairro fervilhava, tanto de dia como de noite.

O professor de História e Teoria da Arquitectura na Universidade de Coimbra Jorge Figueira vê este movimento como o “festejo da democracia” de um Portugal que não estava habituado a sair à rua, sendo o Bairro Alto "a sua forma mais exponenciada”. Então espaço de “vanguarda” para novas expressões artísticas, essa componente “foi-se diluindo” com o passar do tempo.

Segundo Jorge Figueira, o que se passou nas décadas seguintes explica-se com a “democratização da vida nocturna”. Volvidos mais de 30 anos, pouca coisa se mantém igual. De dia está praticamente vazio e à noite o espaço ganha vida.

Há 18 anos que a loja de tatuagens Bad Bone Tattoos permanece na Rua do Norte. Natacha Fontinha é a proprietária e defende que a globalização chegou ao bairro e onde antes havia diversas “tribos urbanas” existem agora pessoas que são “todas iguais e vêm ao bairro para beber”.

O charme do bairro histórico
No outro dia, o Rúben morreu. “Mais novo do que eu, morava ali no terceiro andar. Do meu tempo conheço aí uns quatro ou cinco”, desabafa Mário Ventura. O envelhecimento da população não é um dado novo, mas quem por lá passa de dia pode agora ver mais gente jovem e não apenas turistas.

Ana Monteiro, 27 anos, fez o mestrado em Psicologia em Coimbra e veio para Lisboa à procura de trabalho. Há um ano que vive numa das ruas mais movimentadas do Bairro Alto e admite que uma das razões da escolha foi o preço da renda. Apesar do barulho da noite, sobretudo ao fim-de-semana, não pondera mudar-se enquanto não encontrar um apartamento com melhores condições.

Um estudo urbanístico de 2013 do investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa Luís Mendes detecta um número crescente de pessoas em idade activa a fixar-se no bairro. Apesar de não se tratar ainda de um processo de “gentrificação” – que implicaria o estabelecimento de pessoas com outro poder de compra –, o investigador aponta outras características dos novos moradores: são estudantes, imigrantes qualificados e jovens trabalhadores. Não são “indivíduos propriamente endinheirados”. Verifica-se, assim, um processo “gentrificação marginal”.

Este perfil de morador “sente-se atraído por um espaço histórico e genuíno, com tudo o que isso empresta à sua distinção social”, continua Luís Mendes. No entanto, “a sua rede social fundamental não assenta no bairro nem nas pessoas que lá vivem”, explica.

O comércio tradicional, já a contas com a crise, acaba por se ressentir. Na Drogaria Santos & Celestina, na Rua da Rosa, já chegaram a trabalhar seis pessoas. Restam José Escadeiro e a mulher que, admitem, se lhes fizessem uma boa proposta, iam-se embora. “O que ganhamos mal chega para os dois”, diz o proprietário.

Se a tendência para a “gentrificação” mais agressiva é já uma realidade, Pedro Costa explica que há certos aspectos que impedem que a transformação do bairro seja mais acelerada. “Existem restrições em termos de planeamento. O Plano de Pormenor não deixa construir com certos materiais, não deixa instalar elevadores, tem restrições ao trânsito. As pessoas não podem parar o seu carro à porta e as casas são muito pequenas”, enumera.

Um dos autores do estudo que compara o Bairro Alto a outros bairros culturais no mundo, Cidades, Comunidades e Territórios, de Junho de 2013, Pedro Costa dá o caso da Vila Madalena, em São Paulo, como exemplo. “Era um bairro de habitações familiares que começou a ser ocupado por artistas quando a Universidade de São Paulo foi para ali. Mas depois virou moda, os preços das casas subiram e as vivendas, que tinham ateliers, começaram a ser substituídas por prédios de nove andares”, conta o investigador.

Para o professor do ISCTE, isso está longe de acontecer no Bairro Alto. E concorda com Hélder Carita, quando este diz que “há vantagens em não ter havido grandes processos de reabilitação dos edifícios do Bairro Alto”. “Quando isso acontece, as pessoas ficam com casas muito boas, vendem-nas e vão para a periferia”, defende o arquitecto.

Também têm aparecido outros pólos de criação cultural e de diversão nocturna na cidade – como o Intendente, a Mouraria, a Bica e o Cais do Sodré –, o que, no futuro, pode levar a uma dispersão maior por Lisboa. “Isso pode acontecer, mas há um conjunto de condições relacionadas com a centralidade, a acessibilidade, a história e a imagem que não se fabricam de um momento para o outro. Não se consegue plantar um bairro destes na Mouraria, porque não existem as mesmas redes de pessoas, hábitos e relações”, defende Pedro Costa.

Alexandre Oliveira, um dos directores do Teatro do Bairro, é da mesma opinião. “Há uma tradição enorme. Haverá outras gerações a seguir à minha que reinventarão o bairro de outra forma. Acho é que devemos dar um contributo para ser mais voltado para a cultura e menos para o lúdico”, refere. Também Hélder Carita partilha esta ideia: “O bairro vai ser sempre reinventado. Tem uma tradição transgressiva. Não é um bairro com características ideais. Se fosse, seria um bairro morto. Tem de viver de tensões.”

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