CML aprecia projecto imobiliário em solos contaminados e sem contrato de urbanização

APL e CCDRLVT emitiram pareceres contrários ao licenciamento por causa da contaminação dos solos, mas não só. Câmara começou a apreciar o projecto um ano antes de a minuta do contrato de urbanização ser aprovado apenas com os votos do PS.

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O fundo Fimes Oriente, que detém 80% dos terrenos da antiga fábrica do gás da Matinha, junto ao Parque das Nações, pediu licença à Câmara de Lisboa, no final de 2013, para avançar com um loteamento de 771 apartamentos, em prédios que chegam aos 21 pisos, sem nada dizer sobre a descontaminação dos solos, exigida pelo plano de pormenor da zona.

A inexistência de qualquer referência ao processo de descontaminação foi uma das razões que levaram a Administração do Porto de Lisboa e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDRLVT) a emitirem pareceres desfavoráveis à aprovação do loteamento, que continua pendente na Câmara de Lisboa.

A urbanização, cujo licenciamento foi requerido pelo Fimes Oriente, um fundo criado em 2004 no quadro do Grupo Espírito Santo (GES) e gerido pela Gesfimo, uma sociedade pertencente a uma holding do mesmo grupo já falida, é a primeira de um total de quatro a executar na área do Plano de Pormenor da Matinha (PPM). Este plano foi desenvolvido para a Gesfimo entre 2004 e 2012 pelo atelier Risco, de que era principal accionista o vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado,  e que actualmente é detido pelos filhos e pela primeira mulher. 

A execução do PPM por fases, requerida pelo fundo, foi aprovada em Novembro de 2012 pelo próprio Manuel Salgado, embora este não tenha subscrito outras decisões camarárias relacionadas com a Matinha por ser um dos autores do plano.

De acordo com o faseamento aprovado, o Fimes Oriente requereu a aprovação do primeiro loteamento previsto, o qual deverá ocupar um total de cerca de 10 hectares, oito dos quais lhe pertencem, cabendo os 2,9 restantes ao município. O projecto apresentado baseia-se num conjunto de pressupostos constantes da minuta de um contrato de urbanização que só foi aprovado pela câmara mais de um ano depois, em Fevereiro passado, com os votos favoráveis dos vereadores do PS e a abstenção de todos os outros. 

Este contrato, que ainda não foi assinado, estabelece as obrigações das partes envolvidas na urbanização de toda a área do plano, determinando, nomeadamente, a forma de repartição dos seus custos e benefícios entre os diferentes proprietários. No entanto, o seu conteúdo compromete apenas o município e a Gesfimo, já que os restantes se opuseram frontalmente a ele, caso das empresas Aermigeste e Exportadora M. Saldanha, ou manifestaram sérias reservas quanto ao seu conteúdo (APL - Administração do Porto de Lisboa), ou optaram por não se pronunciar (Lisboagás).

As duas primeiras empresas detêm ali cerca de 6 mil m2 e não só rejeitaram formalmente o contrato de urbanização, por o considerarem contrário aos seus interesses e direitos, como se opõem desde o início ao PPM e ao faseamento da sua execução aprovado a pedido do Fimes. No caso da APL e da Lisboagás, ambas disputam nos tribunais, desde há vários anos, a propriedade de uma área de cerca de quatro hectares (40 mil m2) na qual o plano prevê a implantação de infra-estruturas rodoviárias essenciais à sua execução.

Na altura em que o projecto do primeiro loteamento, elaborado pelo Risco e coordenado pelo arquitecto Tomás Salgado (filho do vereador do Urbanismo), foi submetido à câmara, em Dezembro de 2013, já esta sabia das objecções dos restantes proprietários. Os responsáveis municipais entenderam, todavia, que isso não era impeditivo do início da execução do plano e da celebração do contrato de urbanização. 

No entanto a APL, que tem jurisdição sobre uma parte da área, tal como a CCDRLVT e a Refer, também por via das suas competências legais, tinham uma palavra essencial a dizer em relação ao projecto de loteamento, pelo que foram consultadas pela autarquia no início de 2014.

Mas ainda antes de se pronunciarem, já os serviços de Urbanismo do município, em Fevereiro do ano passado, tinham chamado a atenção para o facto de o Fimes Oriente não ter entregue o certificado de descontaminação dos solos exigido pelo regulamento do PPM. Dias depois chegou à câmara o parecer desfavorável emitido pela APL, desde logo por o projecto ignorar a questão da descontaminação e por não ter sido apresentado o Plano de Prevenção e Gestão de Resíduos de Construção e Demolição exigido por lei. O documento suscita também várias questões relacionadas com as acessibilidades à futura urbanização e com as suas implicações nos acessos à zona portuária. 

Por último, os serviços da APL aproveitam para defender uma “negociação aprofundada do contrato de urbanização [cuja minuta, aprovada pela câmara em Fevereiro deste ano, já estava então elaborada], capaz de esclarecer cabalmente todos os proprietários acerca das implicações das transformações preconizadas, assim como do tempo, do modo e dos custos do seu efectivo envolvimento no processo”. O mesmo parecer nota que o projecto de loteamento em apreço se enquadra num “ambicioso programa de realização ou alteração de obras de infra-estruturas, cujas implicações, na perspectiva dos interesses da APL, estão longe de ser claras”.

Contactada pelo PÚBLICO na semana passada, a presidente da APL, Marina Ferreira, fez questão de salientar que os termos deste parecer podem transmitir “uma noção de conflitualidade que não corresponde à realidade do dia-a-dia” - uma vez que existe uma “grande articulação” entre a entidade que dirige e os serviços do município.

Sustentando-se na posição da APL e da Refer, que também se pronunciou contra o projecto por razões que se prendem com a proximidade de alguns edifícios à linha férrea, a CCDRLVT emitiu um parecer igualmente desfavorável em meados de Março do ano passado. O conteúdo desse parecer, juntamente com as reservas dos seus próprios serviços, levou depois o director municipal de Urbanismo a indeferir o pedido de licenciamento do Fimes Oriente em Abril do ano passado.

Dois meses depois, o promotor apresentou um conjunto de alterações subscritas pelo Risco, mas os serviços municipais voltaram a considerar que o processo não reunia as condições necessárias para ser aprovado. Já em Dezembro foram entregues novos elementos, que levaram a Refer a mudar de posição, dando luz verde ao projecto, devido à deslocalização de alguns edifícios. Entre os novos elementos apresentados, conta-se um estudo de descontaminação dos solos da responsabilidade da empresa Egiamb. 

A CCDR e a APL, porém, não voltaram a pronunciar-se, razão pela qual, já em Janeiro deste ano, os técnicos municipais defenderam, até agora sem êxito, um novo indeferimento do processo. No mês seguinte, dias depois de os vereadores do PS aprovarem a minuta do contrato de urbanização - actualmente à espera de uma deliberação da assembleia municipal para ser assinado -, uma outra informação técnica da câmara refere que a aprovação do loteamento “mantém-se pendente” devido à pronúncia da APL, “que até ao momento, do que se conhece, é desfavorável”.

Quanto à descontaminação, o estudo apresentado pelo Fimes Oriente adianta que a resolução do problema obrigaria a remover 33.136 metros cúbicos de solos contaminados. O custo estimado para a escavação, transporte e deposição dos resíduos em aterro licenciado é de 4,9 milhões de euros. Nos termos da lei, o estudo em causa terá de ser objecto de parecer da CCDRLVT, entidade à qual compete o licenciamento das operações de descontaminação. Até agora ainda não lhe foi submetido qualquer processo referente a este assunto. De acordo com a presidência deste organismo “não se identifica na CCDRLVT qualquer processo relativo a descontaminação de solos na Matinha, Lisboa”, o mesmo sucedendo com a Agência Portuguesa do Ambiente.

Nos últimos dois meses a Câmara de Lisboa viabilizou dois outros grandes projectos imobiliários polémicos para construir em terrenos que são propriedade de empresas ligadas ao universo Espírito Santo. Um deles prende-se com a construção de um edifício de 17 pisos em Picoas. O outro tem a ver com a construção de uma grande urbanização na zona da Gare do Oriente, em terrenos onde a Petrogal esteve instalada até à realização da Expo 98. 

Gesfimo diz que os terrenos não são do GES
“O Fimes Oriente não é detido directa ou indirectamente por qualquer entidade pertencente ao GES”, disse ao PÚBLICO, por email, um responsável da Espírito Santo Property, empresa detida pela falida Rio Forte e dona da Gesfimo, gestora daquele fundo. Alexandre Torres Pereira, que já foi administrador da Gesfimo, adiantou que “as unidades de participação [acções] do Fimes Oriente são totalmente detidas por empresa pertencente a 100% ao Novo Banco”. 

O último relatório de gestão daquele fundo, relativo a 2013, esclarece que nessa altura a totalidade do capital do Fimes Oriente era detida pela seguradora GES Vida, de que o BES se tornou o único proprietário em 2012, depois de comprar os 50% detidos pelo Crédit Agricole. Na sequência da “resolução” do BES no ano passado, a GES Vida passou a integrar o Grupo Novo Banco, mudando o nome para GNB - Seguros Vida.

Durante os primeiros meses do ano passado, pouco antes da crise do grupo ser conhecida, a BES Vida conseguiu reduzir drasticamente a sua exposição a acções e obrigações do GES, tendo também reduzido de 1,6 mil milhões de euros para 980 milhões os seus depósitos no BES.

De acordo com Alexandre Torres Pereira, a actual situação da Rio Forte/ES Property “não interfere com o objectivo da Gesfimo/Fimes Oriente de obter o licenciamento municipal do loteamento submetido a aprovação” e “não afecta as acções a desenvolver” pela Gesfimo em relação ao Fimes Oriente. A mesma fonte acrescenta que a Gesfimo “prevê iniciar a construção das infra-estruturas logo que obtenha o respectivo licenciamento”, sendo “prematuro” avançar datas para a construção dos edifícios, que só poderá iniciar-se numa fase adiantada da execução das infra-estruturas.

A empresa salienta que este primeiro loteamento se desenvolve “integralmente” em terrenos do Fimes Oriente e que as infra-estruturas necessárias à sua execução “serão suportadas exclusivamente por este fundo”.

Quando à descontaminação dos solos, Torres Pereira confirma que não foi ainda pedido o seu licenciamento, “estando em conclusão” os respectivos estudos. A descontaminação, afirma também, “antecederá qualquer obra de infra-estruturas a executar no terreno, conforme determinado pelo Plano de Pormenor da Matinha”.

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