Câmara de Lisboa vai lançar concurso para esplanada que já está a funcionar

Vistas espectaculares dos terraços do Carmo estão a ser exploradas há mais de um mês por uma conhecida pastelaria, graças a uma “cedência temporária” efectuada pelo município.

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A esplanada dos terraços abriu no dia 25 de Agosto, mas ainda não houve concurso Rui Gaudêncio
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A fachada das ruínas do Carmo que deixou de ser iluminada por opção do arquitecto Siza Vieira Rui Gaudêncio

A Câmara de Lisboa vai lançar uma hasta pública para concessionar a exploração de uma cafetaria, restaurante e esplanada nos terraços do Convento do Carmo, mas a pastelaria Versailles já lá está instalada desde 25 de Agosto.

A autarquia diz que fez uma “consulta expedita ao mercado”, na sequência da qual foi feita uma “cedência temporária” àquela empresa, até ao final de 2015, mediante o pagamento de 2400 euros por mês. 

O PÚBLICO quis saber quem foram as restantes empresas objecto da “consulta expedita”, mas não obteve resposta da autarquia. Entretanto foi criada no Facebook a página Versailles Chiado, na qual a empresa proprietária da quase centenária pastelaria divulga o seu estabelecimento dos terraço do Carmo sem qualquer referência ao carácter precário da cedência.

Segundo a autarquia, até à adjudicação da concessão ao vencedor da hasta pública, a Versailles é também responsável, além do pagamento da renda mensal, pela manutenção do espaço, situado nas traseiras do convento e com uma vista única sobre o Rossio e a colina do Castelo. A cargo e expensas  da empresa proprietária da pastelaria, diz a câmara, está também a manutenção das casas de banho públicas ali construídas, a abertura e fecho dos acessos aos terraços, e a segurança do local — embora ele esteja permanentemente vigiado por um agente da Polícia Municipal. 

Apesar de a abertura e fecho dos acessos ser da responsabilidade da empresa e de os mesmos disporem de um portão metálico com fechadura, a entrada nos terraços é sempre possível, uma vez que durante a noite, e inexplicavelmente, o portão não é fechado por ninguém. A Polícia Municipal limita-se a barrar o caminho com uma fita de plástico ao fim do dia, ficando um dos seus agentes toda a noite no Largo do Carmo.

Para explicar a entrega “temporária” da cafetaria à Versailles, a autarquia afirma que, entre as empresas consultadas — cujo nome não foi revelado embora isso tenha sido expressamente solicitado pelo PÚBLICO na passada quarta-feira — foi ela que “revelou capacidade para entrar em exploração mais cedo” e de acordo com as condições estabelecidas.  

A decisão, justifica o município, “visou salvaguardar condições de segurança e manutenção do património e do espaço público”, que foi inaugurado no dia 10 de Junho, depois da conclusão das obras ali realizadas, no valor de mais de dois milhões de euros, de acordo com um projecto do arquitecto Siza Vieira.

Elevador e loja vão ser concessionados
O acesso ao local faz-se actualmente através do Largo do Carmo, do elevador de Santa Justa e das escadarias situadas no pátio de um edifício da Rua do Carmo. Além disso, está a ser ultimada a instalação de um elevador que ligará esta artéria ao primeiro patamar dos terraços. Para se ir daí à cafetaria será depois necessário subir 24 degraus sem rampa para deficientes. O objecto da hasta pública em preparação incluirá não apenas a concessão desse estabelecimento, mas também a exploração do elevador e de uma loja contígua, que o município possui na Rua do Carmo.

A câmara garante que a “cedência temporária” efectuada não inclui a loja da Rua do Carmo, situada no espaço onde funcionou uma repartição de Finanças, próximo da antiga casa Ana Salazar. Junto às obras que ali estão a ser concluídas há porém quem garanta que a Versailles lá se vai instalar brevemente. Ao PÚBLICO, um dos sócios-gerentes da pastelaria da Av. da República, Paulo Gonçalves, respondeu apenas: “Não confirmo que vamos para a Rua do Carmo. Não está nada acordado. Está tudo no segredo dos deuses.” 

Quanto à hasta pública, a autarquia assegura que a Versailles “não terá qualquer direito de preferência, legal ou contratual, devendo aí apresentar-se, querendo, em igualdade de circunstâncias com os demais candidatos”. Entre estes, refere, poderá incluir-se a Associação dos Arqueólogos Portugueses, que tem a seu cargo, desde 1864, o Convento de Carmo e o respectivo museu e desde há vários anos mostra interesse em explorar o estabelecimento.

Para esta associação, a cafetaria, cujas instalações foram construídas mesmo por trás da loja do museu, deveria funcionar em articulação com ele, criando-se aí um novo acesso ao interior do monumento. Isso mesmo estava previsto no programa de intervenção desenvolvido pelos serviços municipais para os terraços, mas acabou por não ser concretizado em obra.

A pretensão dos arqueólogos explorarem a cafetaria foi apoiada pela Assembleia Municipal de Lisboa, que aprovou em 2010 uma recomendação à câmara nesse sentido, e foi objecto de sucessivos ofícios dirigidos pela associação, sem resposta, ao actual e ao anterior presidente da câmara.

Ao PÚBLICO, a autarquia diz que “foi devidamente ponderada” a recomendação da assembleia, tendo-se concluído que não é possível atribuir directamente a exploração do espaço, sem concurso, “ainda que à associação dos arqueólogos”. Esta entidade, porém, poderá candidatar-se “em igualdade de circunstâncias com todos os demais candidatos” à hasta pública a realizar, “querendo e tendo objecto estatutário para tal”  — salienta a câmara através do seu Departamento de Comunicação.

Os desencontros entre a associação dos arqueólogos e a Câmara de Lisboa não se limitam, todavia, à questão da cafetaria. Desde 2008 que a respectiva direcção expressa aberta e repetidamente, mas sem resultado, a sua discordância em relação a muitas das opções do gabinete de Siza Vieira na intervenção efectuada na envolvente do Convento do Carmo. Na opinião do seu presidente, José Morais Arnaud, a arquitectura não teve devidamente em conta a arqueologia. 

Fachada do convento ficou às escuras
Uma outra questão que está a indignar a Associação dos Arqueólogos Portugueses prende-se com o facto de a fachada do convento estar completamente às escuras há vários meses e assim dever permanecer por decisão do arquitecto Siza Vieira. A informação de que a iluminação retirada em Maio no decurso das obras realizadas na envolvente daquele monumento nacional não será reposta foi-lhe transmitida por escrito, na semana passada, pelo vereador do Urbanismo da Câmara de Lisboa, Manuel Salgado.

A associação, responsável pelas ruínas daquele monumento nacional há 151 anos, alertou várias vezes a Câmara de Lisboa, nos últimos meses, para o facto de os oito projectores embutidos no solo que iluminavam a fachada gótica terem sido removidos, sem serem substituídos por qualquer outro sistema de iluminação. 

Na opinião dos dirigentes da associação, os projectores até então instalados no pavimento do Largo do Carmo “proporcionavam uma luz rasante, que realçava as inscrições e o portal gótico” da antiga igreja e garantiam a iluminação das escadarias e do átrio de acesso ao monumento. A ausência de qualquer luz directa tem sido alvo de numerosas críticas, designadamente por parte de espectadores dos concertos nocturnos e de participantes de outros eventos que ali se realizam regularmente.  

No último ofício dirigido ao presidente da câmara, Fernando Medina, no dia 15 de Setembro, o presidente da associação, José Morais Arnaud, recorda que o Convento do Carmo é o “único edifício gótico da cidade que sobreviveu ao terramoto de 1755”, e salienta que a iluminação retirada não foi substituída “nem pelos projectores previstos no projecto [de Siza Vieira para a requalificação da zona], nem por qualquer outro tipo de iluminação”. 

Esta situação, acrescenta, “não só desvaloriza um dos monumentos mais marcantes da cidade como criou de imediato problemas de higiene e segurança”, aludindo ao facto de o Largo do Carmo, com a sua localização e as esplanadas que lá funcionam, atrair todas as noites um grande número de pessoas, em particular aos fins-de-semana. 

Em resposta a uma anterior reclamação sobre o mesmo assunto, o vereador Manuel Salgado informou a associação, no dia 23 de Setembro, de que a retirada da iluminação se deveu ao facto de “o estudo de luminotécnia e iluminação monumental apresentado pelo autor do projecto de arquitectura – arquitecto Álvaro Siza Vieira – para o local não prever a manutenção dos projectores existentes”.

Manuel Salgado adianta que, face às exposições dos arqueólogos, a câmara questionou o projectista, “tendo este informado que deveria ser mantida a opção de projecto já aprovada”. O autarca informa ainda que “toda a zona intervencionada nos Terraços do Carmo encontra-se iluminada desde o dia 9 de Setembro, data em que o arquitecto Álvaro Siza Vieira validou todo o sistem de iluminação (pública e monumental)”.

De acordo com os responsáveis da associação, o projecto inicial de Siza Vieira previa a montagem de duas colunas equipadas com vários projectores dirigidos à fachada do monumento, conforme se vê nos desenhos do projecto. No decurso da empreitada, chegaram mesmo a ser abertas galerias para a passagem das respectivas cablagens. Nessa altura, diz Morais Arnaud, a associação fez notar que os feixes luminosos projectados a partir das colunas seriam prejudicados pelas ramagens das árvores existentes no Largo do Carmo, continuando a defender a solução pré-existente dos projectores embutidos no solo.

A opção final do projectista, de acordo com o ofício de Manuel Salgado, acabou por ser a dispensa de qualquer iluminação. Os arqueólogos não escondem a sua perplexidade: “Temos agora as traseiras e a lateral do monumento devidamente iluminadas, o mesmo acontecendo com  as esplanadas e com o Largo do Carmo, mas temos a fachada completamente às escuras”, diz José Domingos, tesoureiro da associação.  

 

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