Autarca de São Domingos de Benfica acusado por funcionária de assédio sexual

“Desapertava-me o casaco e dizia que não me queria ver tão tapada. Encostava-se a mim e dizia que queria sentir o meu calor”, descreve a queixosa ao PÚBLICO. Já António Cardoso refuta as acusações, que diz terem um “carácter fantasioso”.

Foto
O caso terá ocorrido em 2014 e em 2015 e foi objecto de uma queixa à PSP João Silva

O presidente da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica, em Lisboa, é acusado de ter assediado sexualmente uma funcionária da autarquia, que entretanto se despediu e apresentou queixa contra António Cardoso na PSP.

Esta situação ocorreu, segundo a própria relatou ao PÚBLICO, durante alguns meses de 2014 e de 2015. Marta (nome fictício), que no início de Julho prestou declarações sobre o caso na Divisão de Investigação Criminal da PSP, conta que durante esse período António Cardoso manteve com ela “conversas porcas”, nomeadamente sobre a sua vida sexual, e comportamentos indesejados, como desapertar-lhe casacos, encostar-se a ela e, numa ocasião, beijá-la na boca.

Confrontado pelo PÚBLICO com as acusações de Marta, o autarca eleito pelo PS refuta-as, sublinhando aquilo que diz ser “o carácter fantasioso de tais imputações”. “Trata-se de imputações graves e infundadas, objectivamente difamatórias, que atentam de forma séria contra o meu bom nome e a minha boa honra”, reage António Cardoso numa declaração escrita.

O primeiro episódio de que Marta se recorda, e que uma outra funcionária garantiu ao PÚBLICO ter testemunhado, teve lugar pouco depois de ter começado a trabalhar na junta. Segundo conta, ao cruzar-se com António Cardoso nas escadas existentes no interior do edifício da autarquia, este dirigiu-se a ela dizendo que tinha visto a sua página no Facebook e que tinha gostado das fotografias em que aparecia de biquíni, acrescentando que devia ter seguido uma carreira como modelo.

“Depois começou a perguntar se eu tinha namorado, se vivia com ele, se tinha sexo”, descreve Marta, explicando que ficou sem saber como reagir à conversa. Depois de alguns meses sem incidentes, a funcionária, que está na casa dos 20 anos e que tinha um vínculo precário, começou a acreditar que aquele episódio tinha sido “uma situação pontual, que não se iria repetir”, mas, segundo conta, o tempo mostrou-lhe que não tinha razão.

“Quando me via desapertava-me o casaco e dizia que não me queria ver tão tapada. Encostava-se a mim e dizia que queria sentir o meu calor. Tocava-me no corpo e encostava-me contra ele”, descreve. “E começou a ter conversas porcas”, acrescenta, dando como exemplo um dia em que, ao ver que tinha herpes labial, o presidente da junta lhe perguntou o que é que tinha andado a fazer. “Não me diga que uma rapariga da sua idade não faz nada com a boca”, terá acrescentado, perguntando-lhe também “o que fazia com as mãos”.

“Comecei a ter medo de ficar sozinha na sala. Não podia ouvir os passos dele e começava a tremer. Começava a suar quando ele entrava”, diz Marta. Mas a “pior coisa”, acusa, ainda estava para vir. “Ele agarrou-me no queixo, deu-me um beijo na boca e foi-se embora. Não consegui dizer nada”, recorda, notando que tal aconteceu num final de tarde em que ela era a única a trabalhar na sua sala.

Segundo conta, apercebendo-se do que se passava, algumas colegas suas começaram a tentar protegê-la, procurando estar por perto quando António Cardoso se aproximava. A dada altura, uma dessas colegas, Susana (nome fictício), decidiu ir falar com Gonçalo Lobo, um psicólogo que é assessor da junta para as das áreas de Acção Social e Saúde (e presidente da associação Abraço), e contar-lhe o que se passava com Marta. Na sequência dessa conversa, este tomou a decisão de a mudar de sala para, segundo a visada, assegurar que teria sempre alguém por perto.  

“Assisti a episódios do presidente a ser inconveniente com a Marta. A abraçá-la, a fazer-lhe festinhas nas costas, a dar-lhe beijinhos, a apertá-la”, conta ao PÚBLICO Susana, que não hesita em falar numa “conduta imprópria”. “O presidente perguntava-lhe ‘está a fugir de mim porquê?’ e abraçava-a, dizia-lhe ‘não se esqueça que tem que ser grata ao presidente’”, relata.  

“Assistimos ao pânico que a Marta tinha. Tinha medo de ficar sozinha na sala, pedia para ficarmos com ela”, descreve Susana. Segundo conta, Marta acabou por lhe confidenciar muito do que se passou, nomeadamente o tal beijo na boca, de que lhe falou em lágrimas.   

“Fiquei incomodada com a situação e contei ao Gonçalo Lobo, que a mudou de sala”, explica Susana. Em resposta escrita enviadas ao PÚBLICO, o assessor confirmou que perante as “alegações” de assédio sexual que lhe foram transmitidas decidiu promover essa mudança. E tomou mais alguma medida? “Assegurei-me que as mesmas [as alegações] já eram do conhecimento da responsável hierárquica da Marta e de elementos do executivo da junta” e “tendo em conta o facto de as alegações terem surgido num ambiente de trabalho relativamente fechado, com pressões inerentes, aconselhei-a a procurar apoio específico, caso pretendesse”, responde.

Questionado sobre se assistiu a algum dos episódios relatados por Marta, Gonçalo Lobo garante que não. “Nunca presenciei qualquer comportamento inadequado do presidente da junta de freguesia em relação à funcionária em questão”, diz. Sem resposta ficaram as perguntas que foram dirigidas ao psicólogo sobre se acredita na veracidade do testemunho de Marta e sobre se tem conhecimento de outras situações do género na autarquia.   

Também sem resposta ficaram muitas das perguntas feitas a António Cardoso, incluindo uma sobre se já foi chamado a prestar declarações sobre o caso na PSP. Questionado directamente sobre a veracidade de vários episódios concretos relatados por Marta, o presidente da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica reagiu com uma declaração de três parágrafos, na qual acusa o PÚBLICO de lhe ter dirigido não “perguntas destinadas a esclarecer os factos ou situações mas antes o guião de um libelo acusatório”.  

“Quero refutar e repudiar, clara e inequivocamente, as imputações de assédio de qualquer espécie ou de comportamento equivalente”, afirma o autarca eleito pelo PS, acrescentando que não deixará de “exigir a devida reparação” a quem “instigou e disseminou esta difamação”. “Quem me conhece e quem comigo trabalha sabe bem o carácter fantasioso de tais imputações”, conclui.  

Já Marta conta que decidiu despedir-se e apresentar queixa na PSP depois de o presidente a ter chamado ao seu gabinete para, numa conversa para a qual foram também convocadas três pessoas da confiança do autarca, a confrontar com as acusações e lhe dizer que tinha ficado “muito desiludido” com ela. “Quando lhe disse você beijou-me, agarrou-me no queixo e deu-me um beijo na boca, ele começou-se a rir e disse ‘o que é que tem? Eu também beijo a minha filha na boca”, relata.  

“Depois começou a espalhar na junta que eu o acusei e que depois neguei tudo, que eu confundi o carinho que ele me deu e que me via como uma filha”, relata com mágoa, contando que foi aí que decidiu deixar o seu emprego. “Sempre dei o meu melhor em todos os trabalhos que fiz. Não merecia que ele me fizesse isto. Ele devia ter-me respeitado”, conclui Marta.

O executivo da Junta de Freguesia de São Domingos de Benfica é presidido, desde as autárquicas de 2013, por António Cardoso, que foi eleito pelo PS e não tinha até então exercido qualquer cargo político. Duas das vogais que com ele tomaram posse em Outubro desse ano renunciaram entretanto aos seus mandatos.

Uma das vogais, Cláudia Fernandes, disse ao PÚBLICO que abandonou o cargo “por motivos profissionais”, enquanto a outra, Cristina Valério, esteve incontactável, não tendo sido possível perguntar-lhe o porquê da sua saída. Para o lugar de Cláudia Fernandes no executivo da autarquia entrou Pedro Miguel Tadeu Costa, filho de António Costa, ex-presidente da Câmara de Lisboa e actual secretário-geral do PS.

Sugerir correcção
Ler 6 comentários