Atleta olímpica foi à escola em Quarteira para falar de marcha, legumes e preconceitos

Ana Cabecinha confessa que não “vai à bola” com os legumes, mas não pode dispensar a sopa às refeições. Os estudantes sonham com o bife e as batatas fritas

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Quando não se gosta de legumes, como é que se engana o paladar? A atleta olímpica Ana Cabecinha foi ontem à Escola Básica nº 2 de Quarteira dar a receita de como se ganha fibra para chegar à alta competição, sem ir “à bola” com os verdes na alimentação. “Os legumes são triturados na sopa, e assim consegue-se uma alimentação equilibrada, é o que eu faço”. Os alunos, com idades compreendidas entre os 10 e os 13 anos, sorriram, a pensar no bife com batatas fritas ao almoço. Ana Cabecinha, marchadora do Clube Oriental de Pechão (Olhão) reconheceu que, em termos de dieta alimentar, não é um “bom exemplo” e que o seu nutricionista passa “algum trabalho” para conseguir que ela se mantenha em forma.

Ana Cabecinha foi a convidada para mais uma sessão de “individualidades na escola” – uma iniciativa inserida no programa “Loulé, cidade europeia do desporto - 2015”, destinada a dar a conhecer atletas de referência nacional e internacional que puxem a juventude para hábitos de vida saudáveis. O agrupamento escolar Laura Ayres, em Quarteira, é frequentado por alunos de 44 nacionalidades diferentes, o que confere ao ensino um ambiente multicultural. Mas, por detrás das medalhas e troféus há um sabor agridoce nas vitórias. A campeã do mundo por equipas na Taça do Mundo México 2010 e recordista nacional dos 10.000 metros e 20 quilómetros e 3000 metros em Pista Coberta, confessou: “Sofri muitas lesões e por três vezes, fui operada a uma hérnia que me apareceu sem saber como”.

Enquanto a ouve contar as suas aventuras para tentar ser a mais rápida, Kelvi, um jovem de origem africana, queixa-se do contrário – a imobilidade: “Fogo, dói-me as costas – já estou a ficar cota”. O aluno, de 11 anos, desliza no assento da cadeira do auditório, demasiado baixa para a sua altura, procurando ficar confortável. A professora, sentada por perto, avisara logo no início: “Portem-se bem, não me deixem ficar mal vista”. A este aluno, lançou o repto: “Não fazes uma pergunta?” Justificação na ponta da língua: “Não, não escrevi”. Porém, não faltaram braços no ar, seguidos de questões - como se faz um atleta olímpico?

Ana Cabecinha, de 30 anos, tornou-se atleta por acidente. Depois de ter partido uma perna, aos dez anos, foi aconselhada a fazer atletismo para recuperar. A partir daí, conta, “tomou o gosto” e com a ajuda e “teimosia” do seu treinador de sempre, Paulo Murta, chegou ao estrelato e prepara-se para os Jogos Olímpicos do Rio em 2016. Por ano, disse o treinador, percorre uma média de 6750 quilómetros, com dois treinos diários, e não descansa mais do que duas a três semanas por ano. “O atletismo não é só correr”, lembrou Paulo Murta, destacando a importância da disciplina, o trabalho e a dedicação. “Ele é mais perfeccionista do que eu”, enfatizou a atleta, voltando a referir a necessidade de existir uma alimentação equilibrada. Um bom pequeno-almoço, disse, é fundamental para manter operacionais os músculos, que volta e meia dão sinais de fadiga. “Já fui operada muitas vezes”, sublinhou.

Mariana Martins, 13 anos, pratica marcha e velocidade, desde há dois anos, em versão suave. “Achei interessante” comentou, referindo-se à palestra. “ Acho que se sofresse uma lesão não continuava”, observou. O colega Gonçalo Mealha colocou-se na fila para conseguir um autógrafo, mas acha que a corrida só faz sentido atrás da bola. “O que gosto é de futebol, mas gostava de seguir a carreira de Youtubista – fazer vídeos e ganhar dinheiro”. Com outros objectivos, Débora Santos diz que frequenta as aulas de viola, na Fundação António Aleixo, em Quarteira. “Gostava de praticar muitas modalidades desportivas, o que não tenho é lá muito tempo”.

Os “marroquinos” do Algarve
O vice-presidente da Câmara de Loulé, Hugo Nunes, anfitrião desta “individualidade na escola”, apelou aos alunos para se juntem aos 8000 atletas que todos os dias praticam desporto no concelho. O galardão “cidade europeia do desporto”, disse, está a ser aproveitado para dar a conhecer os vários equipamentos que existem, desde o litoral ao interior.

Por seu lado, Ana Cabecinha, recordou a falta de apoios que existem na sua área. “Para eles, lá em Lisboa, nós somos marroquinos”. Mesmo sabendo estar a “remar contra a maré”, a atleta tem vindo a divulgar a marcha junto das escolas, mostrando a importância desta modalidade, que chegou a ser vista como algo “estranha” há cerca de duas décadas, quando passou a ser divulgada em Portugal. Na altura, recorda, quando treinava junto às estradas da zona de Olhão, onde vive, os automobilistas não resistiam a meter-se. “Começávamos a correr, principalmente os homens, para evitar as buzinadelas”. Ainda hoje, no Algarve, diz, há preconceitos. “Eu tenho um sobrinho, de oito anos, que tem muitas qualidades, mas ninguém o faz marchar – os colegas do futebol dizem-lhe que a marcha é para maricas”. A tia não esconde a decepção. “Fico triste, mas acho que já está mudar um bocadinho”

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