A reabilitação dos bairros de Lisboa vai descer à terra

A zona do Cais do Sodré vai servir de ponto partida para um projecto de reabilitação urbana horizontal. Em vez de recuperar os edifícios um a um, voltam a ocupar-se os pisos térreos.

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Uma ideia para regressar a Portugal Vera Moutinho

Todos os dias encerram lojas em Lisboa. Quem anda pelas ruas depara-se com esse cenário, mas dificilmente está a par da crueza dos números: em média, 16 lojas fecham as portas diariamente na capital; por ano, são mais de 5700. É uma bola-de-neve que está a desertificar zonas da cidade onde o comércio desempenhava um importante papel na vida de bairro. Zonas que, sem comércio e sem pessoas, estão em progressiva degradação.

O problema inquietou suficientemente quatro arquitectas para que se pusessem a trabalhar numa solução – e encontraram-na. O resultado é o projecto Rés-do-Chão, que nesta quinta-feira foi distinguido com o terceiro prémio do FAZ – Ideias de Origem Portuguesa, no valor de dez mil euros (o primeiro e o segundo prémios foram entregues, respectivamente, aos projectos Orquestra XXI e Fruta Feia).

O plano é simples: devolver as ruas às pessoas. Havia mais um projecto entre os finalistas com o mesmo objectivo. Foi o método proposto para o fazer que entusiasmou o júri do concurso da Fundação Gulbenkian e da Cotec – Associação Empresarial. “A nossa missão é ocupar pisos térreos comerciais vazios através de um novo modelo de arrendamento comercial, fazendo uma ponte entre proprietários e arrendatários”, começa por explicar Marta Pavão.

“Uma das coisas que sabemos é que muitos dos proprietários hoje em dia só estão dispostos a fazer arrendamentos longos, de dois, três, quatro anos, ou a vender. Os arrendatários não querem, e não podem, assumir o risco de arrendar por longos períodos de tempo. O Rés-do-Chão tenta resolver esse problema do mercado, criando esta ponte entre os dois”, aprofunda Sara Brandão, numa conversa a cinco com o PÚBLICO.

Sara Brandão é a única da equipa que vive em Lisboa. A “visionária” desta ideia, Mariana Paisana, está em Ahmedabad, na Índia. Marta Pavão e Margarida Marques trabalham em São Paulo, Brasil. Na última semana, estiveram a aprimorar o projecto. A conversa decorre após essa semana de “treino” e ainda antes de terem conhecimento do prémio. Até aí, só tinham recebido elogios. Poucas horas depois tinham assegurado um financiamento inicial.

Vão apostar numa espécie de reabilitação horizontal, contrariando a tendência de recuperar edifício a edifício. Porquê? “Vamos começar pelo espaço que é vital, porque acreditamos que este é o esforço mínimo possível para conseguir o máximo de reabilitação. Ao conseguirmos reabilitar os pisos térreos, vamos muito mais rapidamente reabilitar o espaço público e incentivar a que o resto aconteça na vertical, nos outros pisos”, afirma Margarida Marques.

“No fundo, isso é parte do modelo inovador do projecto”, diz Sara. “Achámos que devíamos começar pelo layer da rua e não reabilitar a partir dos edifícios individualmente. Primeiro, faremos uma selecção de pisos térreos que não necessitam de obras de grande volume. E acreditamos que isso no futuro vai potenciar investimentos de outras pessoas, de outras entidades, para virem a reabilitar o edificado. Mas neste momento temos de começar pelo que não está extremamente degradado mas está vazio, porque é o mais rápido e mais eficaz.”

Intervenção no bairro de São Paulo
O Rés-do-Chão vai começar pelo bairro de São Paulo, ao Cais do Sodré. “Falámos com a Câmara [Municipal de Lisboa] para perceber se era ou não um lugar o estratégico. Disseram-nos que sim, explicaram-nos que dentro dos programas BIP-ZIP [Programa Local de Habitação] é um dos bairros considerados de intervenção prioritária”, conta Marta Pavão. “Toda esta zona ribeirinha tem uma série de planos de desenvolvimento futuros. O Cais do Sodré tem uma série de dinâmicas associativas e muitas instituições vão mudar-se para aquela zona”, atalha Sara Brandão.

“No futuro, aquela zona vai necessitar de novos serviços, de novas actividades, de novas dinâmicas e, além disso, está neste momento muito degradada e muito desertificada”, continua. “E é uma zona com um património incrível.” Acresce que o bairro tem matéria-prima em quantidade para o Rés-do-Chão trabalhar: segundo Sara Brandão, “mais de metade dos pisos térreos está neste momento vazia”.

Feita a intervenção, seguirão para outros bairros. “O objectivo é que as pessoas se apropriarem disto e não sermos necessárias daqui por um tempo”, explica Margarida Marques. Sara Brandão sublinha por seu lado que “é necessário capacitar a população e a comunidade para que as suas ruas não estejam vazias”. E é por isso que pretendem envolvê-las no processo. “Queremos desenvolver parcerias com a comunidade local, artistas locais, residentes – é muito importante este envolvimento. A nossa ocupação não será indiferenciada do lugar e do contexto”, diz.

Também não será indiferente à altura do ano. Mariana Paisana, a autora da ideia, lembra que existem oportunidades de negócio sazonais que não devem ser esquecidas – comerciantes que têm produtos para vender em alturas como o Natal, a Páscoa ou o Verão, mas que não têm como manter uma porta aberta o resto do ano. É para criar este tipo de oportunidades de negócio e de dinamização os espaços que nasce o Rés-do-Chão.

“O que nós percebemos foi que neste momento o comércio, como nós o conhecemos, não está a funcionar. E portanto o que queremos é dar possibilidades às pessoas de encontrarem novas maneiras de trabalhar nesta nova maneira de ver a economia”, afirma Mariana Marques.

“Quando não há arrendatários, nós próprias acabaremos por ocupar os espaços com actividades que gerem receitas e que dinamizem esses espaços”, adianta Margarida Marques. Por outro lado, as quatro arquitectas também pretendem que “o Rés-do-Chão seja responsável pela dinamização de alguns pisos térreos estratégicos na cidade para conseguir receitas que garantam a continuidade da iniciativa”.

O grande desafio, para já, será fazer do bairro de São Paulo uma zona tão movimentada de dia quanto é de noite. Ou, pelo menos, diminuir o fosso entre o número de pessoas que acorrem ao Cais do Sodré nos diferentes momentos do dia. O primeiro passo será disponibilizar a informação que estão a recolher, sobre as necessidades daquela zona, sobre as últimas lojas que fecharam e porquê, para que os potenciais futuros ocupantes destas ruas saibam “o que faz sentido neste momento naquele bairro”.

O PÚBLICO apoia o FAZ – Ideias de Origem Portuguesa

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