“A emoção do savoir-faire, do trabalho artesanal, está muito ligada à cultura”

Gilles Zeitoun O seu ramo de negócio são os seguros. Mas a história familiar acabou por levar este empresário francês a retomar a actividade do pai e do avô alfaiates: instalou no Porto um atelier de alta-costura, cujo sucesso e importância na reactivação da Baixa da cidade levaram a Câmara do Porto a distingui-lo com uma medalha de honra – a mesma que vai ser outorgada a Rui Rio e, a título póstumo, Vasco Graça Moura.

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Nfactos/Fernando Veludo

Nascido na Tunísia em meados da década de 1950, Gilles Zeitoun é um empresário francês com carreira consagrada no sector dos seguros. Mas o que o trouxe ao Porto, em 2005, foi outra actividade, com que mantém uma relação afectiva que vem da família. Filho e neto de alfaiates, Zeitoun decidiu de alguma maneira prolongar essa herança investindo na alta-costura e na salvaguarda dos saberes artesanais que a sustentam. Associado a um amigo espanhol, José Gonzalez, com quem partilha uma boutique em Paris, decidiu procurar em Portugal – depois de ter demandado outros países, por exemplo, no Leste da Europa – o savoir-faire indispensável à alta-costura. Encontrou na Baixa do Porto (na Rua de José Falcão) um belo edifício centenário de arquitectura arte nova, revestido com azulejos verdes – e que incluía um auditório de espectáculos –, e decidiu restaurá-lo de forma criteriosa. Fez dele a sede do Atelier des Créateurs, que, em 2009, criou três dezenas de novos postos de trabalho, recuperando para os nossos dias a acti

O sucesso desta aventura, e a importância que o atelier está a ter para a tão desejada recuperação da vida e da actividade laboral na Baixa, levou a Câmara do Porto a distinguir o empresário francês com a Medalha de Honra da Cidade, a mesma que na próxima quarta-feira, dia 9, será atribuída ao ex-presidente Rui Rio e, a título póstumo, ao poeta portuense Vasco Graça Moura. Um gesto que surpreendeu Gilles Zeitoun.

Como recebeu a notícia desta homenagem da Câmara do Porto?
Foi absolutamente uma surpresa, quando recebi um telefonema do Dr. Manuel Pizarro a dar-me conta de que a câmara queria homenagear-me com uma medalha, e a perguntar se eu a aceitava (risos). Foi uma honra para mim, claro. E quase não tive tempo de perguntar porquê. Aceitei e agradeci, sem saber muito bem do que se tratava... Sei agora que é uma medalha da cidade, mas não sei muito bem a que propósito ma vão entregar…

O sucesso do seu Atelier des Créateurs está na origem do gesto da autarquia. No final da década passada, quando apostou em estabelecer-se no Porto, não imaginava que isto pudesse vir a acontecer.
Não imaginava, de maneira nenhuma. Quando me lancei nesta aventura, toda a gente me disse que eu era louco (risos). Foi uma aposta terrível sobre o futuro, mas eu estava confiante quanto à minha “loucura”.

Que balanço faz da actividade do atelier?
É um balanço muito positivo. Criámos mais de 70 empregos e actualmente trabalhamos para clientes em 50 cidades europeias. Claro que Paris é importante, mas estamos também em Estugarda, Oslo, Londres, Genebra… Temos ainda lojas no Porto e em Lisboa, e vamos continuar a chegar a outros lugares. Isto significa exportar uma marca, a marca do savoir-faire português. Não se trata apenas de dar trabalho a portugueses, mas também de fazer entrar divisas. No ano passado, aumentámos os nossos números em 11%. Este ano, esperamos um aumento de 18%.

Por que é que escolheu Portugal, e o Porto, para o seu projecto?
Surgiu completamente por acaso. A vida é sempre feita destas coincidências. Como sabe, estou associado a José Gonzalez e, à época, quando ele me perguntou onde nos devíamos estabelecer, eu não sabia, sequer, que havia no Porto este savoir-faire. Sabia que ele existia em Itália e nos países de Leste… Foi através do Gonzalez que chegamos cá. No início, adquirimos uma empresa portuguesa que, na realidade, estava em dificuldades financeiras. Decidimos então fundar uma nova, a partir do zero. Começámos a recrutar operárias, caso a caso. Foi uma luta.

O facto de ter nascido numa família de alfaiates teve importância na sua aposta na alta-costura?
Sim. O meu avô e o meu pai eram alfaiates. Há aqui algo de hereditário, mesmo se não se trata da minha profissão, já que trabalho nos seguros. Mas eu sempre usei, quando era pequeno, os fatos que me eram feitos, por medida, primeiro, pelo meu avô, e depois pelo meu pai. Vestíamos aqueles calções curtos, com as meias e os pequenos casacos com os emblemas... Vivi toda a minha infância e juventude assim e, por isso, pareceu-me normal... Conheci o José Gonzalez em Paris, através de um amigo comum, e foi assim que me associei a ele neste sector.

A moda, agora, volta a estar na moda, mas, em Portugal, pelo menos, a profissão do velho alfaiate – e das antigas costureiras – está a desaparecer…
Lembro-me que, nos anos 1970, os alfaiates começaram também a desaparecer progressivamente em França. No ano 2000, já não havia nenhum. José Gonzalez, no seu pequeno atelier em Paris, via os seus empregados envelhecer e começava a ter dificuldades em substitui-los à medida que eles se iam reformando. Surgiu então a possibilidade de comprar uma empresa no Porto. Perguntou-me se eu o podia acompanhar neste projecto. E foi assim que as coisas aconteceram. E como não gosto de deixar as coisas pela metade, disse-lhe: “Não nos vamos ficar por um pequeno atelier, vamos fazer algo em grande…

Como chegou a este belo edifício? O que é que o atraiu nele?
Visitei mais de cinquenta casas, durante ano e meio, antes de encontrar esta. Primeiro que tudo, agradou-me o seu lado majestoso. Queria fazer qualquer coisa que saísse da vulgaridade. A emoção do savoir-faire, do trabalho artesanal, está muito ligada à cultura, e era preciso que essa cultura pudesse ser fabricada num contexto particular. Como este antigo teatro estava classificado como património municipal, foi preciso pedir à câmara autorização para aqui instalar uma actividade profissional. Tivemos todo o apoio da autarquia para avançar com o projecto. Foi um trabalho de renovação muito grande.

Onde foi buscar as costureiras que aqui trabalham?
Quando aqui chegámos, começámos a trabalhar com os funcionários da velha empresa, que não sabíamos que estava em dificuldade. Melhorámos as condições de trabalho, e isso agradou ao pessoal. Depois, quando encontrámos este local, pusemos anúncios nos jornais a pedir costureiras. Mas aproveitámos ainda muita gente da antiga empresa – hoje, restam apenas 15% dessas pessoas.

Aquando da abertura do atelier, disse que o artesanato era arte contemporânea.
A vida é feita de ciclos. Houve uma altura, durante muitos anos, em que o trabalho manual foi desvalorizado um pouco por todo o lado. Em Paris, nós criámos mesmo uma associação para valorizar e fazer sobreviver esse trabalho artesanal, Les Grands Ateliers de France. Porque, em França, isso era um problema terrível. Quando cheguei ao Porto, apaixonei-me por esta cidade. Dei-me mesmo conta de que nela havia muito savoir faire, e que era preciso fazer exactamente o mesmo que fazíamos em França. Criámos aqui, também, uma associação, a que chamámos mesmo Savoir-Faire. O objectivo é, justamente, descobrir e ajudar todos os talentos que podem surgir. Promovemos concursos de escolas para que esses talentos se manifestem e os possamos ajudar a instalar-se e fazer com que essa alma que existe continue a prosperar. É muito importante salvaguardar esse saber e essa actividade. Como pode ver aqui no atelier, a percentagem do trabalho manual é elevadíssima. Para fazer um facto, é preciso juntar 160 peças – é um trabalho bastante custoso, mas que é compensado com o prazer da obra acabada.

As costureiras portuguesas têm alguma marca especial que as diferencie das de outros países?
Não sei se são diferentes. Mas, em todo o caso, são muito conscienciosas e têm o cuidado de fazer as coisas bem. De resto, isso não acontece apenas neste domínio, acontece também com outras actividades. Os franceses preferem a mão-de-obra portuguesa à dos outros países.

Sei que tem projectos para fazer crescer o atelier.
Sim. Sou proprietário de um outro imóvel aqui ao lado, e preciso agora de pedir autorização à câmara para estender para aí a nossa actividade. Hoje já estamos no máximo da capacidade de produção. Com o novo edifício, podemos facilmente criar mais uma vintena de empregos e dedicar também uma parte do espaço para a formação. Desde o início, através da associação, tentei motivar as pessoas a apostar na formação, e a instalarem-se mesmo individualmente.

Visita a cidade desde há quase uma década. Já se sente um portuense?
Vou dizer uma coisa curiosa. Desde que aqui vim pela primeira vez, fiz fotografias do Porto e de Saint-Tropez, onde tenho uma casa de férias. Depois mostrava às pessoas fotos das duas cidades e perguntava-lhes se elas reconheciam o lugar, e elas trocavam-nas. É que, no Porto, acontece como em Saint-Tropez, com todas estas casas – a que, em França, chamamos “casas de pescadores” – ao lado umas das outras, com aquelas cores ocre. É o charme do Porto, uma cidade que tem muitas potencialidades. Outra coisa que me cativou, quando aqui cheguei, foi a sensação de quietude. Sinto-me bem aqui, de tal modo que não excluo mesmo a hipótese de vir viver para o Porto, um dia.

Quais são os lugares de que mais gosta na cidade?
Do que gosto mais é da zona histórica. Gosto dos velhos edifícios. Se pudesse, renovava estas casas todas (risos). É um prazer olhar para elas, que têm uma alma muito forte. Felizmente que Porto tem conseguido respeitar a sua zona histórica, através de regras muito estritas. Isso é muito importante. Vi coisas feitas noutros lugares que não foram nada conseguidas. É preciso respeitar a alma do Porto.

O que é que vai dizer, se tiver de fazer um discurso na cerimónia da Câmara do Porto?
Primeiro que tudo, vou conhecer o novo presidente da câmara. E o que poderei dizer-lhe, entre outras coisas, é que ele tem uma jóia entre as mãos, e que espero que a faça brilhar cada vez mais.

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