A cantiga é uma arma e o teatro, o graffiti e o cinema também

No Bairro da Quinta de Paramos, em Espinho, a intervenção social tem sido feita com recurso a expressões artísticas.

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Moradores do bairro de Paramos, em Espinho, sentiam-se abandonados Adriano Miranda
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No bairro de Paramos há hortas à porta de casa em vez de canteiros abandonados Adriano Miranda
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Reinaldo Santos, 19 anos, banho tomado depois de uma jornada na fábrica de papel onde é operário, e a dizer que tem pressa porque quer ir almoçar, compõe o boné e insiste que a pala esteja virada para a frente. Mesmo quando o realizador, Pedro Cruz, lhe pede para a pôr para trás, porque lhe está a tapar os olhos e esse não é plano que fique bem numa imagem. Reinaldo insiste, porque não aguenta que o sol forte, que já vai a caminho do mar que tão bem dali se avista, numa das entradas do Bairro da Quinta de Paramos, em Espinho, lhe bata directamente na cara. “Não aguento, a sério. Tenho mesmo de ter a pala para a frente”, justifica.

No plano idealizado por Pedro Cruz não cabe apenas Reinaldo. Sentado à soleira da mesma entrada está Duarte Santos, 20 anos feitos ontem. Partilham o apelido, mas não são da mesma família. Família de sangue entenda-se. Seriam gémeos se o facto de morarem no mesmo bairro e se identificarem com o mesmo projecto e género de música lhes desse alguma filiação consanguínea. São ambos autores e vocalistas da música “Filhos do Bairro”, uma espécie de hino com batida hip-hop, que deixa bem claro o estigma que sentiam por viverem no Bairro Social Quinta de Paramos: “Visto que te difamam e que a vida aqui é triste!/Que ninguém tem futuro, pois é tudo uma grande cambada/ De malcriados, ladrões e que todos os dias há porrada!/Somos, olhados de lado quando mencionamos de onde somos/Não temos voto de confiança, então, como podemos levar a vida?!Se não temos confiança…/Eu sigo de cabeça erguida, a última a morrer é a esperança!”.

A letra saiu-lhes a pulso, depois das oficinas com Gisela Borges, a técnica de acção social com uma especialização no recurso ao teatro como forma de intervenção social, e que esteve nos últimos dois anos a trabalhar no Bairro de Paramos no âmbito do Contrato Social de Desenvolvimento Local “Espinho Vivo”. Reinaldo já fazia hip-hop antes do arranque deste projecto. Duarte experimentou pela primeira vez. Com Gisela Borges e com os artistas que ao longo dos últimos três anos se têm deslocado até este bairro de Espinho, levando-lhe os seus materiais, talento e boa vontade, acabaram por fazer letra e música de um hino que se tornou marca do Bairro. No caso da música “Filhos do Bairro”,  os beats foram trabalhados com o dj Tiago Espírito Santo. “Com pequenas histórias e poucas esperanças…/São poucas as memórias e muito velhas as lembranças./Para dizer, que não há nada para fazer…/Hoje em dia temos de fazer para o bairro crescer…/Fazer, para não ser uma carta fora do baralho,/Mas apesar de tudo, ser filho do bairro!”.

Psicóloga de formação, Gisela diz ao PÚBLICO que a arte lhe tem facilitado o acesso aos moradores. “Eram pessoas muito revoltadas, diziam que tinham sido abandonadas. O discurso acerca do bairro era feito sem meio termos: era tudo muito, muito mau. Ou então era muito bom - para que não fosse atacado”, começa por contar. Através da intervenção artística, do teatro, do graffiti, da música, do vídeo, este projecto envolveu as pessoas “mas respeitando sempre a individualidade de cada um”, explica a psicóloga. 

Pedro Cruz está a fazer as rodagens do documentário final que será uma espécie de memória futura e um balanço dos quase três anos de intervenção artística a que foram sujeitos os quase 600 moradores do bairro Social Quinta de Paramos. Este realizador de Albergaria-a-Velha, também já tinha participado na recolha de imagens para o filme “Mãos na Obra”, assinado por Pedro Almeida, de Setúbal, em que é documentado todo o projecto de intervenção social e trabalho comunitário de que os habitantes do bairro foram protagonistas. Nele retratam a pintura de um mural colectivo, as oficinas de teatro e de escrita criativa, a instalação de papeleiras pintadas pelas crianças e apadrinhadas pelos moradores, nele, enfim, a componente institucional. Este filme estreou no FEST — Festival de Novos Cineastas, de Espinho, e esteve em vários festivais internacionais. Pedro Almeida também já tinha dedicado uma curta ao bairro de Paramos — “Por Aqui Nada de Novo” — e por estes dias tem andado no terreno a fazer pesquisa para a produção de um segundo. Estavam todos, por isso, à porta das mesmas escadas, para ouvir Reinaldo e Duarte responder às perguntas de Gisela Borges e João Doce. 

De manhã já tinham estado todos juntos a recolher os depoimentos de António Pinto da Costa, José Leite e Dionísio Francês, moradores que chegaram em etapas diferentes ao Bairro. José falou da importância que dá ao facto de ser o padrinho da papeleira do seu prédio, pelo orgulho de ter sido pintada pelo seu sobrinho. António sugeriu que as reuniões de moradores (como aquela que teve lugar no início desta semana, impulsionada pelos serviços de acção social da autarquia, destinada a criar condições para que surja uma associação de moradores) deveriam cumprir escrupulosamente a ordem de trabalhos. Dionísio foi dizendo que a vida no bairro está melhor do que quando chegou, há cinco anos.  Hoje em dia há hortas à porta de casa em vez de canteiros abandonados; as papeleiras não estão vandalizadas, mas ainda há lixo nas ruas. Vai avançar um programa estruturado de hortas urbanas e há quem sonhe em abrir uma esplanada no bairro, com vista para o mar. Porque não há um único estabelecimento em toda a Quinta de Paramos.

“Hoje teriam feito uma letra e um hino diferente?”, pergunta João Doce. “Claro que sim”, responde Reinaldo, sem pensar muito. “Naquela letra falávamos muito de esperança e as mudanças aconteceram. Hoje já não falava em esperar que mudem. Porque mudam mesmo”.

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