Beja quis incluir as criadas de servir no acordo que há 50 anos criou a base aérea alemã

A chegada dos alemães a Beja fez recear um choque cultural, demográfico e económico de imprevisíveis consequências, mas a sua presença, que terminou em 1993, pouco buliu com a realidade local. Resta uma estrutura com actividade militar sujeita a restrições orçamentais e um aeroporto civil com movimento residual de passageiros.

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No dia 8 de Agosto de 1966 chegou à Base Aérea nº 11, em Beja, o primeiro contingente de militares alemães com a finalidade de corresponder aos acordos celebrados entre o Estado português e a República Federal Alemã (RFA) que concedia a este país facilidades de instrução em missões de treino de voo e de tiro. A sua chegada era consequência directa do ambiente de guerra fria que se vivia entre os Estados Unidos da América e a União Soviética, no final dos anos 50 do século passado, factor que veio a revelar-se determinante na instalação a nove quilómetros de Beja. Completam-se nesta terça-feira, 50 anos da publicação da portaria que anunciou a sua constituição.

A historiadora Ana Mónica Fonseca explica no seu livro Política Externa Portuguesa - Dez anos de relações luso-alemãs - 1958-1968 como a localização estratégica da planície alentejana, “longe de um possível teatro de guerra”, foi decisiva para a instalação de uma estrutura militar de grandes dimensões que deveria funcionar “como plataforma entre a Europa e os Estados Unidos” no caso de uma ofensiva militar soviética sobre a Alemanha.  

O acordo que conduziu ao início do que viria ser o conturbado processo de instalação da unidade militar alemã foi assinado em Dezembro de 1960 durante uma visita a Lisboa do Ministro da Defesa alemão, Franz Josef Strauss. A historiadora destaca o peso que teve no resultado final das negociações, “o espoletar do conflito angolano, em Fevereiro e Março de 1961” e o alargamento dos conflitos com os movimentos guerrilheiros à Guiné e Moçambique. 

A instalação da base de Beja teve um papel “preponderante” no auxílio alemão a Portugal, destacando-se o fornecimento de equipamentos militares, sem os quais “seria muito mais difícil” a Portugal enfrentar as guerras em África, garantindo, ao mesmo tempo, o tratamento em hospitais alemães dos militares feridos em combate.

Acontece que quando foi conhecido o teor do acordo entre os dois países, de imediato surgiram críticas por parte dos governos africanos, forçando o governo alemão a “prestar mais atenção” à sua posição externa de solidariedade com os “justos anseios dos povos africanos”, assinala Mónica Fonseca.

A partir de 1964 assistiu-se a um progressivo arrefecimento nas relações luso-alemãs designadamente no campo militar, com reflexos na utilização prevista da base de Beja. A par dos protestos veementes do bloco afro-asiático dava-se uma alteração fundamental no conceito estratégico de defesa da própria NATO. Na verdade, a “obtenção da paridade nuclear” entre as duas superpotências em 1966 relegava para segundo plano a rede de apoio logístico na retaguarda que tinha sido concebido para Beja.

Acresce ainda que a saída da França da NATO em 1966 “criou sérias dificuldades a Portugal”, nomeadamente devido à questão do sobrevoo do seu território pelos aviões alemães, em trânsito para Portugal. O Governo espanhol, por sua vez, só autorizava a passagem das aeronaves alemãs pelo seu território com destino a Beja, desde que os pedidos fossem solicitados com uma semana de antecedência e “caso a caso”. Estes condicionalismos abriram caminho a um acordo entre a RFA e os Estados Unidos que garantia o treino completo dos pilotos alemães em solo americano.

Tendo em conta todas estas contingências, a estrutura militar alemã projectada para Beja tornou-se muito menos ambiciosa, sofrendo reduções substanciais na base aérea e na zona residencial, quando as obras destes equipamentos já estavam em curso.

De início, foi programado alojar em Beja 1500 oficiais, soldados e funcionários alemães, a que se juntariam os membros das respectivas famílias, um total de 5250 cidadãos da RFA. A estes, juntar-se-iam cerca de 3000 portugueses como empregados, técnicos e outros trabalhadores de apoio aos serviços de voo, manutenção e reparação, que iriam habitar num bairro projectado para 1500 fogos. Os militares, sobretudo pilotos a instruir em Beja, ficariam alojados na própria base militar, onde seriam construídos cerca de 400 alojamentos.

Previa-se que, em poucos anos, “duplicaria a população do agregado urbano”, referia o plano director elaborado que realizou um estudo sociológico sobre os impactos que a unidade militar alemã provocaria. Com efeito, dos 15.702 habitantes recenseados em 1960 no concelho de Beja, previa-se que se atingisse perto de 29.000 em 1970 e 50.000 nos anos 80. Estes números nunca foram alcançados. Os Censos de 2011 apontam 35.854 habitantes para o concelho de Beja  e no chamado “bairro alemão” - que ficou reduzido a 339 fogos, dos cerca de 1500 previstos no projecto inicial - vivem hoje cerca de 600 militares da Força Aérea Portuguesa (FAP) e seus familiares.

A relação àcerca das implicações de ordem sócio-económica que resultariam da instalação do pessoal alemão e português necessário ao funcionamento da base colocavam um problema inédito à comunidade de Beja. Não era possível antecipar do ponto de vista humano as consequências resultantes deste súbito acréscimo de população estrangeira “com um nível de vida e culturalmente superior ao da grande maioria dos residentes da cidade”, assinala o documento, admitindo que a nova realidade demográfica “irá provocar profunda transformação na ordem sócio-económica”.

Uma das preocupações expressa na circunstância residia no relacionamento dos militares estrangeiros com as mulheres de Beja. Um apelo feito pelas forças vivas da cidade junto da comissão luso-alemã que presidia à instalação do projecto militar, reclamava um código de conduta que deveria “servir de guia” aos forasteiros. Sugeria-se que os militares alemães recebessem informação complementar sobre os costumes locais destacando “as relações com as mulheres, por serem as mais susceptíveis de causar perturbação e conflito com a população masculina”.

Também as famílias abastadas de Beja foram confrontadas com o alastramento do “fenómeno”. Não estavam a conseguir garantir a continuidade do “pessoal para os serviços domésticos do sexo feminino a que habitualmente se dá a designação de criadas”, explica um abaixo-assinado entregue à comissão luso-alemã dando conta dos problemas delicados que o recrutamento de “criadas de servir” iria provocar na cidade de Beja e fora dela, “nomeadamente os salários mais altos”, de que resultaria para as “famílias abastadas a perda de serviço que equivale a um agravamento das dificuldades de ordem económica”.

“Não deviam ser oferecidos salários mais altos do que os praticados na região até porque estes são, entre nós, os salários justos, os que estão de acordo com o nosso nível de vida", propunha-se. Os alemães ofereciam um salário de 1500 escudos mensais, que contrastava com os 300 escudos que eram pagos pelas famílias abastadas.

O “agravamento dos salários das criadas não poderá ser suportado pela maioria dos agregados de Beja. Poderia provocar graves problemas de relacionamento entre portugueses e alemães”, alertava-se. Em alternativa: as habitações destinadas ao pessoal alemão “não deviam incluir instalações para criadas”. A comissão luso-alemã não deu acolhimento às sugestões apresentadas.

Foi neste ambiente revelador de alguma tensão que chegou à nova base, em 1966, o primeiro contingente de militares alemães, que se mantiveram até 1993. Em 1992, as autoridades alemãs tinham apresentado novas condições de utilização da infra-estrutura que construíram: controlo do espaço aéreo português; rotas militares de baixa altitude, com a abertura de novos corredores de voo diurno e nocturno; alargamento dos campos de tiro, ar-ar, na região de Sines e a deslocação de uma esquadra de aviões supersónicos Tornado, proposta que significaria a renovação do acordo bilateral Luso-Alemão. Não foi aceite pelas autoridades portuguesas e um ano depois cessava a presença alemã em Beja.  

Ficou para os portugueses o que é designado como “valor restante”. E a dimensão deste “valor restante” é exemplificado pelo 28º comandante da base área nº11 Coronel /piloto aviador Teodorico Lopes. A estrutura militar que os alemães ergueram em Beja “está preparada para receber aeronaves de grande porte de categoria 8 quando a máxima é 9”. Até a NASA seleccionou a nova pista como alternativa para o Space Shuttle.  

Dispõe de uma pista principal com 3450 metros de comprimento por 60 metros de largura, e uma pista secundária com 2951 metros de comprimento por 30 metros de largura, classificadas com as de maior extensão a nível europeu.   

O militar descreveu ao PÚBLICO o nível e qualidade dos equipamentos que qualificam a base de Beja de “importância extrema e de retaguarda pela sua capacidade em acolher grandes meios aéreos”. A área que ocupa, mais de 800 hectares, tem condições para receber “mais de 60 aviões tipo C-130 e mais de 300 aviões F-16”.

Outra das vantagens reside na sua localização que beneficia de um conjunto de factores determinantes na navegação aérea. “Não há na Europa espaço aéreo tão livre, pelas condições meteorológicas e de visibilidade, ou um espaço aéreo tão descongestionado dada a inexistência de obstáculos naturais e a distância face a aglomerados urbanos”, assinala Teodorico Lopes, destacando ainda a capacidade para albergar mais de 1500 pessoas.

Concluídos 50 anos do arranque de um projecto dimensionado para fazer face a um determinado contexto geoestratégico, crescem as dificuldades com a manutenção da estrutura de grande dimensão pelos elevados custos que envolve. Paralelamente, as restrições orçamentais impostas pelo Governo reduziram a actividade militar na FAP. As aeronaves são em número insuficiente, o que obriga os pilotos a “ficar, por vezes, entre 4 a 6 meses no Estado-Maior” até que haja lugar nas esquadras de voo. “Uns esperam que outros terminem os cursos, para ocuparem o seu lugar” descreve Teodorico Lopes.  

Na base de Beja, apenas cinco pilotos recebem instrução avançada de pilotagem. São dois em aviões Alpha jet e três nos helicópteros Alouette III. Dos 50 aviões Alpha jet deixados pela força aérea alemã em 1993, restam apenas seis aparelhos que vão estar operacionais até 2018, e dos 144 helicópteros Alouette III que a FAP recebeu com o final da guerra em África resistem também seis. Operam ainda em Beja 5 aviões P-3C Cup+Orion na vigilância marítima da Zona Económica Exclusiva portuguesa.

Os constrangimentos orçamentais “não se reflectem na segurança, que está assegurada, mas reduz-se a eficiência” do pessoal e dos equipamentos devido à redução substancial das horas de voo, alerta Teodorico Lopes, dando conta que, em 2010, as três esquadras estacionadas em Beja realizaram 4812 horas de voo, um número que em 2014 ficará reduzido a 2652 horas de voo.  

O militar que é natural de Olhão e que já soma mais de 3 mil horas de voo sem “nunca ter tido um acidente” não esconde o seu “orgulho” por estar à frente dos destinos da base aérea nº 11 no seu 50º aniversário - que é precisamente a idade que tem - e assume que a sua missão é “garantir a prontidão das unidades aéreas atribuídas” por maiores que sejam as dificuldades.

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