O triste fim da Fundição do Ouro

Desde o início do processo de industrialização - o qual, entre nós, começa a intensificar-se a partir do segundo terço do século XIX - que a indústria metalúrgica se assumiu como um dos seus sectores mais importantes. De facto, a modernização do tecido industrial portuense passou, numa primeira fase, pela emergência de um sector metalúrgico, o qual irá utilizar, pela primeira vez na cidade do Porto, a energia a vapor. São deste período inicial a Companhia de Artefactos de Metais (Fundição do Rosário), fundada em 1838, e a Fundição do Bicalho, fundada em 1841, as primeiras e mais importantes fábricas metalúrgicas da cidade.Não obstante ter sido a Fundição do Rosário a primeira a introduzir a energia a vapor - nos finais da década de 1830 ou nos primeiros anos da seguinte -, será a Fundição do Bicalho aquela que assumirá um papel de maior destaque no sector metalúrgico da época. Fundada por David Hargreaves e John Eccles Martin, a Fundição do Bicalho regista, inicialmente, um período de alguma prosperidade. No entanto, em 1849, a falência bate-lhe à porta, sendo então constituída uma nova sociedade para explorar a fábrica. Em 1856, Luís Ferreira de Sousa Cruz - que, anteriormente, já tinha tentado estabelecer-se como industrial - entra para a administração da fábrica, como secretário, e em 1860 é já o seu arrendatário, tentando contrariar a má situação económica que a mesma então vivia. Não o conseguindo, abandona em 1864 a Fundição do Bicalho, quando esta já era pertença de um novo proprietário, Eugénio Ferreira Pinto Basto.Sem grandes posses, mas munido do capital de conhecimentos e de experiência adquiridos na Fundição do Bicalho, Sousa Cruz decide então instalar-se por conta própria, fundando a sua própria fábrica metalúrgica, logo em 1864. Apesar de se debater com carência de capitais, conseguiu erguer rapidamente três barracões de madeira, no Campo de Ferreiros, freguesia de Lordelo do Ouro, dando ali logo início à actividade da nova fábrica - a que chamou Fundição do Ouro. As instalações definitivas, ocupando uma área de 3000 metros quadrados, foram inauguradas dois anos mais tarde, em 15 de Agosto de 1866, numa cerimónia em que estiveram presentes as principais autoridades e figuras notáveis da Cidade Invicta.Foram inúmeras as vicissitudes que a Fundição do Ouro conheceu ao longo da sua existência, as quais conduziram, por diversas vezes, a novas razões sociais, principalmente durante a última década do século passado. No início do séc. XX, a Fundição do Ouro readquiriu a sua estabilidade económica e empresarial, ao integrar a Companhia Aliança, a qual já era proprietária da mais importante fábrica metalúrgica do Porto, a Fundição de Massarelos.No princípio da década de 1980, após 125 anos de actividade, a Fundição do Ouro (Companhia Aliança) encerra definitivamente a laboração. Nessa época, mais precisamente em 1984, como se recordarão aqueles se interessam pelo património industrial, pensava-se organizar no Porto uma exposição de arqueologia industrial - que constituiria a "versão local" de uma outra exposição do mesmo tipo, então organizada em Lisboa, na Central Tejo. Era, portanto, indispensável encontrar um local adequado para apresentar a referida exposição. Entre as pessoas que trabalharam nesse projecto - que, infelizmente, não chegou a concretizar-se - logo surgiu a ideia de utilizar as antigas instalações da Fundição do Ouro (Companhia Aliança) como local para realizar a exposição. Mais, após o "terminus" da mesma, a antiga fábrica metalúrgica poderia, enfim, ser reutilizada como museu industrial, ideia que, na altura, colheu a adesão de várias entidades, como a Câmara Municipal do Porto (CMP) e a Associação Industrial Portuense (AIP).Ao mesmo tempo que se desenrolavam os contactos com vista à concretização destes objectivos, agravava-se a situação económica da Fundição do Ouro (Companhia Aliança). Em Maio de 1984, as instalações, os terrenos (14.000 metros quadrados) e o espólio da fábrica são alvo de um auto de penhora, sendo igualmente fixada para Novembro desse ano a sua arrematação em hasta pública. O tempo urgia, e era indispensável evitar a todo o custo não só a perda de uma fábrica histórica da industrialização portuense, como a dispersão de tão valioso espólio.Por sua vez, e pressionado pela necessidade de realizar capital para fazer face à grave situação em que se encontrava, o proprietário da Fundição do Ouro (Companhia Aliança) apresenta uma proposta de venda das instalações e do seu espólio, tentando que o Estado as adquirisse, com vista a instalar a exposição de arqueologia industrial que o então Instituto Português do Património Cultural (IPPC) estava a organizar, assim como o futuro Museu da Indústria. Apesar de ter reunido inúmeros pareceres favoráveis à sua aquisição pelo Estado (da AIP, da CMP e do próprio IPPC), a burocracia estatal e o desinteresse que neste país já então estava instalado em matéria de salvaguarda do património fizeram com que nunca tivesse havido qualquer resposta. O tempo foi passando e, inevitavelmente, o proprietário da fábrica veio a ser executado judicialmente, perdendo-se qualquer possibilidade de salvaguardar aquele património.Apesar deste desaire, em 28 de Setembro de 1989, o então IPPC (actual IPPAR - Instituto Português do Património Arquitectónico) emitiu um parecer favorável à protecção legal de uma parte daquele património, considerando em vias de classificação um conjunto de equipamentos industriais (uma galga, três pontes rolantes e um martelo-pilão) e ainda seis quadros a óleo representando os fundadores e administradores da empresa. Já anteriormente, em 29 de Julho de 1989, o IPPC tinha determinado a classificação de sessenta pastas, contendo 23.000 desenhos de moldes, peças de fundição e caldeiraria, acervo com base no qual se poderia reconstituir toda a produção da Fundição do Ouro - e, também, da Fundição de Massarelos, pois, quando esta fechou, em 1975, o seu acervo documental foi incorporado no da Fundição do Ouro, dado pertencerem ambas à Companhia Aliança - ou seja, toda a produção metalúrgica das duas mais importantes fábricas do Porto, desde 1852, data da fundação da Fundição de Massarelos. Como é obvio, é desnecessário salientar a excepcional importância que aquele acervo representava!Naquela deliberação, e embora considerasse que as instalações da Fundição do Ouro não eram merecedoras de classificação, o IPPC recomendava ainda que se mantivessem "in situ" os portões e o gradeamento artístico em ferro fundido, com cerca de 140 metros de comprimento e 1,4 metros de altura, o qual rodeava parcialmente as instalações da fábrica.Para além de todo aquele espólio fabuloso, se o Estado tivesse adquirido a Fundição do Ouro (a verba pedida era de 475.000 contos, e cerca de um quinto da mesma não era necessário desembolsar logo de imediato, pois correspondia a dívidas à Segurança Social, ao Fundo de Desemprego e ao Ministério das Finanças) teria também salvaguardado dezenas de outras máquinas e equipamentos de interesse arqueológico-industrial - evitando que tivessem ido parar à sucata -, uma importante biblioteca técnica (composta por centenas de livros e revistas estrangeiras, na sua maioria do séc. XIX), assim como todos os livros de contabilidade e de administração da Companhia Aliança (das duas fábricas, Fundições do Ouro e de Massarelos) desde 1852, num total de 104 espécimes!Torna-se desnecessário salientar a tragédia que constituiu a perda de todo este conjunto patrimonial, tanto para a história da indústria portuguesa, como para a memória de uma cidade onde a indústria metalúrgica desempenhou um papel tão importante. O mais grave, contudo, é que as escassas medidas de salvaguarda então decretadas - como a preservação "in situ" dos portões e do gradeamento - nunca foram respeitadas, nem as entidades responsáveis se preocuparam em fazê-las respeitar. Como a fotografia que ilustra este artigo demonstra, após ter sido completamente saqueado o que restava das instalações da fábrica, uma boa parte do referido gradeamento - o tal que deveria ser salvaguardado "in situ" - está a ser arrancado e roubado aos bocados. Descansemos, que também há-de chegar a vez dos portões.

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