Festival Todos vai agora à descoberta do Poço dos Negros

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Guilherme de Sousa, da Mercearia Goesa, diz que o bairro já está a ser considerado trendyPatrícia Jorge é nova no bairro, onde abriu o Monte dos SaboresPara Domingos de Brito, "o bairro mudou muito, morreu" Fotos: daniel rocha

Na quarta edição, o festival intercultural Todos cresce. Sem deixar o Martim Moniz e o Intendente, alarga-se ao Poço dos Negros, zona que hoje está a mudar mas que mantém o espírito de bairro

O cabo-verdiano Domingos de Brito olha para a Rua dos Poiais de São Bento, Lisboa, através da porta do seu restaurante a cheirar a novo. "O bairro mudou muito, morreu, acabou." Aponta umas janelas no prédio em frente. "Ali era uma pensão que servia cachupa, ali em baixo um restaurante. Antigamente isto estava cheio de movimento e de música. Agora o comércio fechou, as pessoas mais antigas morreram, outros foram para fora".

A Rua dos Poiais de São Bento que está na memória de Domingos de Brito é a que conheceu quando veio para Portugal no início dos anos 70. "Se estávamos sozinhos em casa, vínhamos a São Bento e encontrávamos sempre alguém que já não víamos há três ou quatro anos". O que este cabo-verdiano sonha agora é trazer de novo a música e a animação para o bairro.

Por isso, e porque "as pessoas queixavam-se muito de que não havia um lugar para se encontrarem", decidiu abrir o Restaurante Tambarina. Numa vitrina, algumas garrafas de grogue cabo-verdiano e ao fundo a cozinha onde Domingos cozinha especialidades do seu país, dos pastéis de milho ao feijão-congo, mas sobretudo cachupa.

O Tambarina é um dos locais a visitar (vai ter workshops de cozinha e música) durante o segundo fim-de-semana do Festival Todos - Caminhada de Culturas (dias 22 e 23 de Setembro), que arranca hoje no Largo do Intendente. 2012 é ano de mudança: o festival ainda se mantêm no Intendente e Martim Moniz (dias 14, 15 e 16), onde começou há três anos, mas avança para uma nova zona, precisamente esta do Poço dos Negros e de São Bento.

Miguel Abreu e Madalena Victorino, dois dos responsáveis pelo festival (iniciativa do Gabinete Lisboa Encruzilhada de Mundos, dirigido por Manuela Júdice), marcam encontro no Restaurante Be/Bel, da belga Nele Duportail, mesmo em frente à Assembleia da República. A manhã está quente, por isso sentamo-nos na esplanada para ouvir Miguel e Madalena explicarem como é que chegaram a esta zona da cidade.

"A proposta de avançarmos para aqui foi da câmara", esclarece o director do Todos. "O que se pretende é procurar os passados e pensar os presentes da cidade. Queremos uma zona mais guetizada para os imigrantes ou queremos que toda a cidade se afirme como multicultural, com várias culturas a cruzar-se em todos os bairros?".

Se o Martim Moniz é evidentemente um local multicultural, com uma presença muito forte de imigrantes de diferentes origens, a zona do Poço dos Negros é um caso diferente. Já foi - como Domingos de Brito bem se recorda - o ponto de encontro dos africanos em Lisboa. Mas as coisas foram mudando. "Esta era uma zona muito africana até aos anos 90, quando se constrói aqui o primeiro condomínio privado e começa a haver uma mudança de perfil. Com condomínios que vivem virados para dentro, o bairro perde o élan que tinha, o comércio começa a fechar", explica Miguel Abreu.

Antes disso, e como a própria toponímia indica, esta era uma área tristemente célebre por, nos séculos XV, XVI, ser para onde se lançavam os cadáveres dos escravos - daí o nome Poço dos Negros. Mais tarde foi zona de casas senhoriais e, ao lado destas, casas mais modestas onde viviam os empregados dos palacetes. Com a alteração desse estilo de vida, muitas dessas casas mais pobres ficaram vazias e foram sendo ocupadas por populações com menos posses, nomeadamente os imigrantes.

Madalena Victorino lembra que continua a haver "uma população africana e paquistanesa a habitar aqui em força". Mas, gradualmente, o bairro tem-se vindo a transformar. Para perceber isso basta fazermos uma visita a alguns dos sítios que farão parte do percurso do Todos. E podemos começar já pelo Be/Bel de Nele Duportail. Chegada a Portugal aos 14 anos, foi sempre "uma rebelde", conta. Inicialmente ajudou a mãe num turismo rural, depois passou por vários restaurantes, mas sonhava ter o seu espaço. Foi quando estava num trabalho em que "morria mentalmente" que tomou a decisão. Abriu há um ano e oito meses. O facto de nessa altura estar "numa situação financeira péssima" ajudou a dar personalidade ao restaurante, com louças e panos de renda dados pela avó. Agora os vizinhos também já lhe oferecem rendas, e descobriu que São Bento "é um bairro". No Todos mostrará como os belgas cozinham os mexilhões, mas também outras especialidades da sua cozinha de fusão - ou melhor, de uma cozinha própria, que ela vai inventando a cada dia.

Rua abaixo, e descobrimos outro espaço relativamente novo. Também Patrícia Jorge e o marido fazem parte dos novos habitantes do bairro, onde abriram o Monte dos Sabores, mercearia especializada em produtos alentejanos. Primeiro uma loja mais pequena, agora, depois das obras, com espaço para uma mesa grande onde dão a provar os produtos que ali vendem, e à volta da qual contam as histórias por detrás de cada produto, porque é isso que lhes dá realmente prazer.

Também Patrícia está a descobrir o bairro. "Há muitas casas a serem recuperadas e há um misto de gente jovem e de outros não tão jovens mas com poder de compra e, ao mesmo tempo, gente que vive aqui desde sempre, com um poder de compra mais fraco".

Nos últimos tempos apareceu uma série de projectos novos, confirma Ana Coelho. Ela própria, juntamente com a sócia, Dulce Gomes, lançou um desses projectos. A livraria Palavra de Viajante, especializada em viagens, instalou-se aqui há cerca de um ano, numa antiga loja de chapéus-de-chuva, da qual restam ainda algumas memórias neste novo espaço que é livraria e restaurante, mas com uma particularidade: a comida que servem diariamente aos almoços é inspirada no tema (país, cidade, etc.) daquela semana. Têm percebido que "há mais gente a viajar," do que pensavam, e muitos a fazer "viagens extraordinárias", para sítios e de formas inesperadas.

Umas portas mais acima encontramos a Mercearia Goesa. O projecto é também recente, mas Guilherme de Sousa e a mulher, Ana Fernandes, conhecem o bairro há muito. Ana é filha de Sebastião Fernandes, o proprietário do restaurante Cantinho da Paz. Quando passamos, só Guilherme é que está na loja, mas dispõe-se logo a contar a história.

De origens transmontanas e angolanas, conheceu Ana - e o bairro - há muitos anos. Também ele se lembra, mas com menos saudade, dos tempos em que havia ali entre a Rua da Paz e os Poiais de São Bento "uma espécie de faroeste, com algumas casas que tinham um ambiente muito complicado". Isso desapareceu, e hoje "isto é tão pacífico que passámos a morar aqui". E a vender chamuças, especiarias asiáticas, produtos biológicos, vinhos, bebinca, chouriço de Goa, enchidos de porco-preto com condimentos indianos, e outras especialidades que, em workshops durante o Todos, Ana vai explicar como se fazem.

"As pessoas já começam a considerar esta zona trendy", diz Guilherme. "Continua a haver o lado bairrista, mas o ambiente perigoso acabou. E já se começam a ver turistas". Um casal de estrangeiros passou há dias pela porta da Mercearia Goesa e pediu-lhe ajuda para localizar no mapa o sítio em que se encontravam. Guilherme procurou e percebeu que o mapa acabava umas ruas mais acima. São Bento ainda ficava de fora.

É precisamente para que São Bento e o Poço dos Negros fiquem dentro do mapa que Miguel Abreu, Madalena Victorino, Giacomo Scalisi e toda a equipa do Todos está a trabalhar. A ideia é que, gradualmente, o projecto se vá alargando a vários bairros de Lisboa. A preocupação é sempre, explica Madalena Victorino, encontrar o equilíbrio entre o trabalho com as pessoas do bairro (as recém-chegadas e as que vivem nele há muito - por exemplo, este ano vai haver as Viagens Tuk-Tuk, feitas com mapas elaborados a partir de conversas e memórias dos moradores mais antigos, o que permite passeios ao mesmo tempo pelo bairro que existe e pelo que existiu no passado), e a programação para os que vêm só visitar.

De qualquer forma, continua Madalena, este é sempre um trabalho lento, feito de contactos pessoais, de tempo, de conquista de confiança. E o pouco tempo (e menor orçamento) significa que este ano "essa relação que se vai construindo está ainda muito incompleta". É só o princípio. E, além disso, é preciso não perder o trabalho feito no Intendente e Martim Moniz, precisamente para que não desapareça essa teia frágil baseada em relações pessoais e que está agora a ajudar a que projectos mais permanentes se consolidem na zona.

Por isso, a festa começa hoje no Intendente - com o espectáculo Arraial (21h30) e o concerto Orquestra de Piazza Vittorio com a Orquestra Todos (22h) - e avança para o Poço dos Negros no próximo fim-de-semana. E entre um sítio e outro querem-se construir pontes - veja-se por exemplo o senhor Huang, chinês de Xangai, e a neta Ana, que vêm da Mouraria para São Bento mostrar como se faz o zhong zi, arroz glutinoso enrolado em folhas de bambu e cozinhado ao vapor. Encontro marcado na Palavra de Viajante.

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