"Cruz de Amor" chegou ao Alentejo

Mensagens apocalípticas estão a percorrer o país de norte a sul, anunciando para breve o fim do mundo. Avisam que só se salvarão os que se acolherem à protecção da "Cruz de Amor" que já foi implantada em quase uma centena de localidades. A movimentação parte do interior da Igreja Católica, mas à revelia da sua hierarquia, e já chegou a uma freguesia do concelho de Beja.

S. Matias é uma das três freguesias do Baixo Alentejo onde já foram erguidos exemplares da "Cruz de Amor". Iniciativa de agrupamentos religiosos com raízes na Igreja Católica, nos últimos três anos as cruzes têm sido espalhadas por todo o país. Sobre a freguesia alentejana, pode dizer-se que a população aderiu ao movimento, o bispo de Beja diz ter sido apanhado "desprevenido" e as responsabilidades, essas, ninguém as quer assumir."A grande seca virá como um fogo, que vai queimar toda a vida vegetal; desestabilizará o planeta Terra, até fazê-lo oscilar sobre ele mesmo como um pião (...). O calor e as explosões serão tais que cidades inteiras arderão sem sequer deixar vestígios. Tudo isto terá de acontecer. Essa mudança universal está próxima (...) e antes do fim do século".Este é um excerto recolhido de entre as muitas mensagens que têm sido veiculadas através de livros e de contactos pessoais, pelas autodenominadas "Testemunhas da Cruz", agrupamentos religiosos com raízes na Igreja Católica, que nasceram em França no princípio dos anos setenta e se estenderam a vários países, incluindo Portugal. O movimento surge depois de uma revelação que teria sido feita por Jesus, na localidade francesa de Dozulé, à vidente Madalena Aumont, pedindo-lhe que transmitisse à Igreja o desejo divino de ver erguida uma cruz com 738 metros de altura. Mas este pedido não foi acolhido pela Igreja. Então, "Jesus apelou aos leigos" através de outra vidente, que se identifica pelas iniciais J.N.S.R. ("Je ne suis rien"), para que fosse construído "aos milhares" um modelo mais pequeno, a "Cruz de Amor", em substituição da "Cruz Gloriosa" que já teria projecto e financiamentos assegurados por apoiantes americanos, revela António Sousa Lara, o ex-subsecretário de Estado da Cultura social-democrata e actual vice-reitor da Universidade Moderna, uma das personalidades que tem promovido a instalação deste tipo de cruzes em Portugal.Assim, em mais de uma dezena de países europeus, americanos, africanos e da Oceania, foram instaladas centenas de modelos alternativos da cruz, agora com 7,38 metros de altura, uma centésima parte dos 738 metros do mastodôntico exemplar que não passou do papel. Em Portugal, e no espaço de três anos, apareceram em vários pontos do país dezenas de cruzes construídas em metal e vidro que, à noite, projectam uma luz azul muito intensa . O objectivo é chegar à centena, conforme determina a alegada revelação de J.N.R.S. Em simultâneo, a Fraternidade Missionária de Cristo Jovem (FMCJ), organização com sede em Famalicão, e que representa em Portugal as "Testemunhas da Cruz", já distribuiu quase 1600 modelos mais pequenos, com 73,8 centímetros, por outras tantas famílias e até estabelecimentos prisionais . Esta é, "a única tábua de salvação que nos levará de regresso a Deus", argumentou uma religiosa em nome da FMCJ, justificando a cruzada que, para além de ser um projecto redentor da humanidade, quer ser também "um elemento purificador" da própria Igreja Católica, que "deixou de ser alternativa ou directriz para os tristes males" da sociedade contemporânea . "A hora é grave", descreve um dos mais recentes documentos divulgados pela Fraternidade Missionária. "Serão os espíritos seduzidos por Satanás" que conduzirão a humanidade "a uma catástrofe como jamais houve desde o Dilúvio, e isto antes do fim do século", vaticina.Quem não está nada satisfeita com estes cenários catastrofistas é a hierarquia da Igreja Católica, que diz ter sido apanhada "desprevenida" com a proliferação de cruzes e de mensagens "ávidas de revelações extraordinárias", comenta o bispo de Beja, D. Manuel Falcão, preocupado com a dimensão do problema na sua diocese. Com efeito, só no concelho de Beja já foram erguidas três cruzes de 7,38 metros, "todas à revelia do bispo", salienta. A diocese já publicou uma nota para que "não seja favorecida a instalação de mais cruzes" por serem portadoras de mensagens "visionárias" e alusivas ao apocalipse. "Tenho pena que isto aconteça", conclui o bispo de Beja, garantindo que tudo fará "para que esta epidemia não avance".No entanto, a mensagem vai passando e as pessoas, mesmo no Alentejo, tradicionalmente avesso a manifestações religiosas, aderem ao movimento, nem que seja "porque a cruz é bonita", como descreve Joaquim Borges, 73 anos, morador em S. Matias, freguesia do concelho de Beja, onde foi colocada uma, há cerca de dois meses. A autarquia não autorizou a sua instalação, e ameaçou mesmo embargar a obra, mas a cruz lá está "e não faz mal a ninguém", comenta, desconfiado, Francisco Aguiã, 76 anos. "Quem a está a pagar somos nós", desabafa por seu turno João Paulino Vargas, 74 anos. Mesmo com esta idade diz-se disposto a ir à luta para defender a permanência da cruz na sua aldeia. Ou seja: a maioria da população de S. Matias não permitirá que seja dali retirada. "É uma ajuda para que sejam perdoados os pecados do mundo e para que a gente não seja castigada quando chegar a hora", observa António Curva, outro residente.Instado a comentar o radicalismo da população de S. Matias, o vereador da Câmara de Beja, Vítor Silva, não tem uma resposta clara para o problema. "A instalação é ilegal, mas o que é que podemos fazer?", questiona o autarca, receoso das consequências que um conflito de cariz religioso pode gerar. Avisado está Sousa Lara quando diz que "a fé das pessoas não tem lógica, pertence ao emocional". Logo, avisa, que se acautelem os autarcas "porque a sua movimentação tem uma natureza política". Diz que já participou na instalação de cinco cruzes pelo país fora (incluindo uma na sua própria casa em Beja) e que nunca houve qualquer problema. "Se quiserem bordoada eu e outras pessoas estamos prontos", ameaça Sousa Lara, que acusa a câmara "comuna" de Beja de querer actuar "à má fila".Entretanto, outros mentores do projecto recusam assumir qualquer protagonismo. O padre Roque, pároco de S. Matias, afirmou ao PÚBLICO nada ter a ver com a instalação da cruz, embora autorizasse que ela fosse instalada nos terrenos da igreja e tivesse participado na sua inauguração. "Quem lhe poderá dizer alguma coisa é a irmã Mariana, que a nível local tem feito um trabalho de sensibilização muito intenso", explica o sacerdote. Mas da parte da visada também não há vontade em falar "dessa coisa, para a qual não fui tida nem achada", esclarece. "Quem está dentro do problema é o padre Roque", adianta.E neste jogo do empurra se fica a saber que qualquer deles está "muito ligado" ao projecto de instalação de uma cruz em S. Matias, revela Francisco Aguiã, anunciando que a obra está a ser paga com o dinheiro da população "que é recolhido e administrado por eles". Sousa Lara, acrescenta, também participou, mas entrou já com o projecto em andamento. A população, recorda, por seu lado, Manuel Faneco, diz que o viu por lá "logo das primeiras vezes" a convencer as pessoas "para que aceitassem a cruz". No entanto, esclarece, o projecto ainda está a ser pago "com dinheiros de peditórios que têm sido feitos em várias localidades". Consta que tenha custado mais de dois mil contos, sem falar nos custos de manutenção e de energia eléctrica que terão de ser pagos, todos os meses. O padre Roque só fala de contas na missa, com as pessoas sentadas - "para que vocês não caiam para trás assustadas", terá dito o sacerdote num dos últimos actos litúrgicos -, lembra Marília Ramos, indignada por se gastar tanto dinheiro numa cruz, quando "há tanta pobreza por aí que precisava de ser ajudada".

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