Chegaram à reforma e há um lar que os acolhe

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Com três anos, a Urze é a burra mais jovem do abrigo. A mãe, Tricana, foi salva do abate quando estava prenha e a cria acabou por nascer ali Pedro Maia

A associação Burricadas, sedeada em Mafra, criou o Abrigo do Jumento para proteger animais maltratados na fase final da vida. Como o espaço já é pequeno para os 16 burros, a associação quer mudar de casa. E para isso precisa de apoios

Mal vê chegar gente ao portão de madeira, Carriça II apressa-se a dar as boas-vindas. É uma burra de pêlo castanho-escuro e esbranquiçado, orelhas espertas e olhos meigos. Gosta de ter pessoas por perto. Durante oito anos foi a mascote de um rancho folclórico, com o qual desfilava e participava em eventos etnográficos. Quando chegou à idade da reforma - tem perto de 25 anos - os donos decidiram entregá-la aos cuidados do Abrigo do Jumento. Agora, em vez de estrela da companhia, é a anfitriã.

A Carriça II é um dos 16 burros acolhidos pela associação Burricadas numa quinta situada em Igreja Nova, Mafra. A associação sem fins lucrativos nasceu em Março de 2007 pelas mãos de Diogo Pimenta e Maria Manuel, com o objectivo de proteger burros maltratados, sobretudo os burros comuns, sem raça definida.

"Não havia na região Centro um projecto dedicado a proteger burros em fim de vida e a divulgar a identidade deste animal ameaçado, que antigamente era muito utilizado na região saloia", diz Diogo Pimenta. Ao contrário do que acontece com a raça mirandesa, a única reconhecida como autóctone em Portugal, não existem fundos nacionais ou comunitários destinados à preservação do burro comum. "Como não tem grande valor económico, acaba por cair no esquecimento", lamenta o fundador da Burricadas.

Ao contrário da Carriça II, a maior parte dos burros que chegam ao abrigo tem um passado de maus-tratos. É o caso do Gaiato I: pêlo branco sarapintado de preto, olhar carente e nariz teimoso sempre encostado aos braços dos visitantes, a pedir carícias. A coluna arqueada denuncia que passou grande parte dos seus 20 anos sujeito a trabalhos forçados na agricultura. Quando deixou de ser útil, tinha como certo o abate. Para o resgatar, Maria e Diogo tiveram de o comprar.

"Alguns animais são cedidos ao abrigo, outros não. Os burros são pagos ao quilo nos matadouros e nós temos de cobrir esse valor para evitar o abate", afirma Diogo. O dinheiro gasto na compra dos animais é só uma fatia do bolo da despesa anual da associação, que sobrevive à custa de donativos de empresas ou particulares e do apadrinhamento dos burros. Cada padrinho paga 25 euros por ano para ajudar o afilhado.

Quanto custa manter o abrigo? "Mais de mil euros por mês," mas a despesa varia se um animal adoecer, por exemplo. Tendo em conta a idade avançada de quase todos os burros - o mais velho tem 38 anos e a mais nova tem três - é impossível fazer grandes orçamentos. E a crise também bateu à porta do Abrigo do Jumento.

A Burricadas está actualmente "no limite", em termos financeiros e de espaço. A quinta de sete mil metros quadrados - a área de um campo de futebol - já é pequena demais para os 16 burros e a mula Boneca, bem como para as galinhas e as ovelhas, também elas resgatadas. E ainda ali faltam três equídeos que Maria e Diogo acolheram na sua residência particular.

Histórias com final feliz

O abrigo vai ser transferido para um terreno maior, cedido à associação por um particular. O ideal era fazer a mudança no final do Verão. "Já temos o projecto aprovado mas faltam as obras. Precisamos de construir estábulos [com capacidade para 40 burros] e um picadeiro." Os burros terão pelo menos 30 mil metros quadrados para passear.

Falta ainda uma carrinha para transportar os burros. "Até agora temos alugado e os custos são muito elevados. Para ir buscar um burro a Coimbra ou à Serra da Estrela, como já nos pediram, os custos são superiores a 500 euros. Às vezes não podemos responder", diz Maria Manuel. No novo espaço, a associação quer também criar programas de asinoterapia, destinados a ajudar crianças com deficiências.

Os recursos humanos são outra lacuna da associação. Diogo é o único funcionário a tempo inteiro no abrigo, ao qual dedica 365 dias por ano. Maria ajuda quando pode e os voluntários escasseiam. As tarefas não atraem a todos: há que acartar fardos de feno, encher as gamelas de ração (que é adaptada a cada animal) e de vegetais, prender os burros, esperar que comam, soltá-los, limpar o palheiro, tirar os estrumes. "São precisas oito a dez horas por dia", diz o responsável.

O esforço, porém, compensa. "Os burros têm-nos ensinado muito. Todos têm personalidades diferentes, redes de amigos, burros que preferem e outros que detestam", nota Maria Manuel, que é antropóloga e apaixonada por equídeos desde sempre. Já Diogo teve de estudar a raça para a conhecer.

Cada burro que entra no abrigo tem, por norma, uma história triste para contar. Maria e Diogo sabem-nas de cor. A Tricana, por exemplo, pertencia a um agricultor e apesar de estar grávida ia ser vendida a um comerciante de carne. Para salvar a "Tricas", que tem 21 anos, a Burricadas teve de cobrir a oferta do comerciante. "Se não fosse isso, a Urze não estaria cá". Nascida em Março de 2009, a Urze é a burra mais nova do grupo - e uma das mais curiosas.

A Joana, amiga inseparável da Gingko, pertencia a um comerciante de gado. Apesar de ter só 15 anos ia ser abatida por ter graves feridas nas pernas e uma infecção generalizada no corpo.

O burro Tito teria o mesmo destino. "Tivemos de convencer o comerciante a vender-nos o burro e pagar mais do que ele receberia se o vendesse no matadouro. Dizia que o animal não valia nada para nós." Antes de chegar ao abrigo, em Agosto de 2009, o Tito tinha os cascos tão grandes que quase não conseguia andar. Hoje anda à vontade. "É um dos nossos melhores casos de sucesso", diz Maria Manuel, orgulhosa.

Além dos donativos e dos apadrinhamentos, o abrigo subsiste à custa da organização de iniciativas temáticas, de passeios pedestres e da venda de artesanato local relacionado com o tema. As visitas de grupos escolares e de particulares são outra grande ajuda. O Duende é o burro que mais sucesso faz com as crianças, que podem escová-lo e ajudar a dar-lhe de comer. É o único burro de raça mirandesa no abrigo e, ao contrário dos outros, não teve de ser resgatado. Por ser o mais carismático - o aspecto de urso de peluche ajuda - é o que tem mais padrinhos. As orelhas peludas, os olhos salientes e expressivos, o pêlo escuro e lustroso ficam bem nas fotografias, para as quais não se cansa de posar.

O Duende tem no abrigo um papel didáctico. "Queremos mostrar às crianças como é a única raça autóctone portuguesa", explica Diogo. A preservação do burro mirandês, também em extinção, está a cargo da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino, sedeada na zona de Miranda do Douro. Segundo esta organização, existem actualmente 830 fêmeas e menos de 25 machos reprodutores.

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