Hoje o meu dia foi só sabura!

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Passear num bairro clandestino? Ainda por cima chamado Cova da Moura? A proposta é da Associação Moinho da Juventude: conhecer as pessoas, as comidas, as tradições. É Cabo Verde sem praia nem calor. Bárbara Wong (texto) e Raquel Esperança (fotos) passearam pelo bairro e gostaram

Fará algum sentido pegar na máquina fotográfica, na família ou nos amigos e ir à Cova da Moura? À partida a resposta parece ser imediata: não. O que há para ver, ouvir ou cheirar num bairro clandestino, construído às portas de Lisboa maioritariamente por cabo-verdianos? "Desconstruir preconceitos", responde Heidir Correia, o animador da Associação Cultural Moinho da Juventude que desenhou, pôs em prática e é o guia do projecto Sabura, que promove as visitas guiadas ao bairro.

Para começar este projecto, a inspiração chegou da África do Sul e do Brasil, onde há turismo virado para as favelas ou bairros de lata e onde os guias entram armados, com o objectivo de mostrar a violência. Mas a Cova da Moura não é perigosa, garante Heidir Correia, nascido, criado e morador do bairro, lançando um cumprimento a um conhecido: "Está-se bem, meu irmão?"

"Já me perguntaram em que zona estão os jovens com armas, mas isso não existe. Há tráfico de droga, mas não é à vista de todos como era no Casal Ventoso", revela. O objectivo não é mostrar a pobreza mas a riqueza da cultura de Cabo Verde, que se traduz na gastronomia, na estética, na música, na sonoridade das palavras que se ouvem aqui e ali com um sabor doce e quente.

O projecto Sabura pode ser o que o visitante quiser, é tudo uma questão de combinar com Heidir Correia. Ponto assente é a visita à associação Moinho da Juventude para conhecer as inúmeras actividades que promove e mantém, sobretudo na área de apoio à infância e juventude do bairro. São mais de nove mil habitantes, os legalizados, frisa o guia, dos quais metade tem menos de 25 anos; desses, a maioria tem até 16 anos.

A creche; o jardim-de-infância; o centro de actividades de tempos livres; a cozinha que fornece refeições; a biblioteca; os programas de formação e emprego; e o estúdio de gravação podem ser alguns dos sítios a visitar. O Kova M Studio é a menina dos olhos de Heidir Correia e de um grupo de jovens que já gravaram o seu primeiro álbum, KovaM Realidade Nua e Crua.

Este é um espaço que pode ser alugado por quem quiser gravar. Aliás, quem estiver de visita ao bairro pode escolher fazer essa actividade: escrever uma letra rimada, aprender a cantá-la ao ritmo do rap, colocá-la num instrumental já preparado e gravar no estúdio. É uma sugestão divertida para ocupar crianças e adultos por algumas horas.

Mas há mais. Mães e filhas podem juntar-se e aproveitar para ir a um dos mais de 30 cabeleireiros do bairro fazer um penteado mais afro ou mesmo aprender a fazer as tranças que parecem contas nas cabeças das mulheres, brancas ou negras. Esta é uma actividade que não está interdita aos rapazes, pois há cabeleireiros unissexo e com preços mais em conta do que os praticados fora do bairro.

"Por 7,50 ou dez euros, a pessoa faz um penteado que lá fora custa 30 euros", revela o guia, frente a um dos cabeleireiros que está associado ao projecto. Muitos dos visitantes acabam por se tornar clientes regulares, garante.

Casas inacabadas

Am visita pode continuar até ao Alto da Cova da Moura, onde se encontra um moinho de pedra, antigo, aquele que dá o nome à associação, que se diz datar do século XVIII ou XIX e que se espera que um dia possa ser reabilitado para se transformar numa biblioteca. Dali, vê-se Lisboa, Monsanto e o bairro todo à volta - a parte em que as ruas estão alcatroadas e a outra onde o alcatrão ainda não chegou. As ruas são mais de mil, com placas identificativas feitas em azulejos Viúva Lamego, desenhados e pintados pelas crianças, com temas alusivos à toponímia.

Caminhar pelo bairro lembra algumas aldeias portuguesas: pela falta de planeamento e arquitectura descaracterizada, pelos cães pachorrentos que saúdam quem passa. As casas são feitas à medida do gosto e das posses dos seus proprietários. Há moradias enormes, com varandas e portadas de alumínio, casas bem pintadas, de cores alegres, que noutro qualquer sítio do país valeriam muito dinheiro; ao lado estão outras inacabadas, com buracos a fazer de janelas, telhados de zinco e tijolo à vista.

Cada casa, por muitos andares que tenha, pertence a um único proprietário, como a "Vivenda Rocha Manuel, esposa e filhos", na Rua dos Reis. Normalmente, o dono vive no rés-do-chão e os descendentes ou os inquilinos nos andares de cima, que são alugados. Aquela que parece um enorme castelo, com ameias e pintada de cor-de-rosa, a antiga Igreja Apostólica do Arrebatamento de Jesus, foi toda transformada em quartos para alugar.

Grandes ou pequenas, imponentes ou simples, a maioria tem em comum um santo protector pintado nos painéis de azulejos, colados na parede principal da casa, por cima da porta da rua. São José, Nossa Senhora de Fátima, a Sagrada Família, São João - de frente para a Igreja Metodista Weslyana, que funciona num rés-do-chão.

O sabor da cachupa

No início, Heidir Correia teve alguma dificuldade em conseguir parceiros para o projecto, mas actualmente são os comerciantes que propõem colaborar com a associação. O bairro tem 26 restaurantes e os que fazem parte do projecto representam cada uma das ilhas cabo-verdianas. Os nomes dos estabelecimentos e a decoração de alguns deles evocam o arquipélago e as suas tradições, como o Restaurante Vulcão, representante da ilha do Fogo; ou os restaurantes Coqueiro e Cantinho do Sossego, que são cartões-de-visita da ilha de Santo Antão.

Aproxima-se a hora do almoço e os cheiros das cozinhas começam a misturar-se na rua, aguçando o apetite. O convite é para comer um prato tradicional como a feijoada ou a cachupa rica, um doce e, no final, beber um copo de grogue ou de ponche, duas bebidas típicas nas ilhas, ao som de música ao vivo. Quem gostar, pode depois dirigir-se à Mercearia Bom Paladar Familiar e comprar feijão pedra ou outros ingredientes para experimentar os pratos em casa.

Depois da visita feita e de uma boa refeição é possível dizer: "Hoje, o meu dia foi só sabura!". Sabura é o nome do projecto em crioulo e não tem tradução para português mas quer dizer qualquer coisa como "muito positivo", "bom".

O programa pode terminar aqui ou ser reinventado: conversar com os habitantes, provar torresmos ou aprender a tocar o batuque ou a dançar hip hop. E, por fim, tirar várias fotografias junto aos grafittis mais bem pintados.

Despeça-se com um "até breve". Quem sabe se, na próxima vez, o programa não passa por uma noite com música ao vivo num bar nocturno da Cova da Moura, de preferência com os amigos, que os miúdos ficam a dormir em casa dos avós? "Não é preciso entrar no bairro acompanhado, não há problema. É muito raro haver um assalto", termina Heidir Correia. A Fugas saiu sozinha e não teve medo.

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