Estado de autofagia

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Houve uma época gloriosa do almanaque da democracia em que se podia ouvir de um recém-político "Pai, sou ministro". Essa velha frase de Dias Loureiro condensava a ambição de quem via na subida ministerial um passaporte social, uma condecoração, mas sobretudo um aconchego fácil. Quem não queria? O povo não andava ameaçadoramente por aí em fúria. Não existia austeridade nem bancarrota. Ninguém esperava, muito menos pedia, por reformas difíceis ou irrealizáveis. Os ministros duravam o tempo que durassem, perante a indiferença e quietude geral.

Desde Maio de 2011 que este mundo se evaporou. Ir para o governo de um país falido, destroçado, intervencionado? Não, vão outros. É ver hoje a fartura de putativos ou genuínos candidatos ao governo e a primeiro-ministro dizerem simplesmente que "este governo não serve mas também não estão disponíveis para o substituir", que "ir para o governo sim, mas não agora", que "não querem este governo mas também não querem outro governo de que eles façam parte". Este é o Governo da troika e por isso não pode ser o deles. Mas não foram eles que trouxeram a troika?

A síndrome não ataca apenas os ziguezagues dos partidos da coligação que já fazem oposição a si mesmos. A quantidade de gente no PS que, de repente, declara este Governo finado sem se oferecer ela própria como alternativa, sem achar sequer que o gesto consequente de um acto de censura é apresentar-se como alternativa, é o extraordinário relato de uma desistência e de uma traição.

Mário Soares e Francisco Assis começaram a pedir a queda do Governo, apelando a Cavaco que por sua iniciativa escolha um governo de iniciativa presidencial. António José Seguro também vê com bons olhos esse governo de salvação nacional, mas atenção: não contem com ele. Seguro não quer este Governo mas também não quer ir para o governo. Não quer o orçamento do PSD nem o seu. Não quer nada. Quer ficar onde está. Como diz Vital Moreira, não há alternativas.

Gente que andou décadas defendendo alterações constitucionais como moções de censura construtiva, gente dos partidos que sempre quis governos constituídos pelos partidos, pede agora a Cavaco que liquide este Governo e seja ele a tratar da sujeira: um governo precisamente sem os partidos.

É revelador. Ao fim de 30 anos em que os partidos nos conduziram criminosamente até aqui, querem agora saltar para fora, ou permanecer na mais longínqua irresponsabilidade. Que estes apelos viessem de alguns populistas, ainda se percebia. Que sejam os partidos, sobretudo o irresponsável PS, a instigar o Presidente a escolher meia dúzia de técnicos de choque para poderem eles ficar a salvo, só mostra a sua falência e inanidade.

Se os partidos pensam, com o PS à cabeça, que poderão passar incólumes da queda livre do país durante o tempo em que a troika aqui estiver estão bem enganados. A forma transigente como este Governo entrou em funções sem achar que era necessário um ajuste de contas com o passado talvez tenha gerado essa impressão mansa. Mas não tenham ilusões.

Se o Governo cair e se seguir um governo extrapartidário, este estado de coisas não irá durar muito. Esperemos mesmo que não dure muito. De uma maneira ou de outra, o nosso regime partidário nunca mais será o mesmo. Pela razão simples de que ou a ruína desse governo sem partidos significaria a ruída estrondosa do país inteiro, ou o seu sucesso mostraria pedagogicamente aos portugueses aquilo que os partidos jamais conseguiram fazer. Querem todos ir para a oposição? Talvez não voltem a sair de lá.

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