O vazio dos funcionários a quem o Estado paga para ficarem em casa

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José Manuel Lucas, de 63 anos, fotografado numa manifestação em Lisboa: "Fomos considerados lixo"Maria Manuel, engenheira agrónoma, contestou em tribunal a colocação na mobilidade especial

Não estão desempregados, mas também não trabalham. Foram dispensados dos serviços em 2007, recebem metade do salário e estão há cinco anos em casa à espera de colocação. Ao todos, são 478 os funcionários públicos nesta situação. Por Raquel Martins (texto) e Daniel Rocha (fotografia)

Não é dada a depressões, mas, se fosse, tinha tudo para cair numa. Já passaram cinco anos desde o dia em que Maria Manuel, engenheira agrónoma e funcionária pública, foi mandada para a mobilidade especial. Nunca conseguiu voltar a um serviço público, recebe metade do salário e não se conforma por querer trabalhar e não poder. "Sou uma pessoa forte. A minha revolta foi tirarem-me uma parte do ordenado e o trabalho. Impediram-me de exercer a minha profissão", indigna-se.

Como ela há 478 funcionários públicos dispensados dos serviços em 2007, quando começou a reestruturação dos organismos do Ministério da Agricultura. Nenhum deles voltou a trabalhar. Estes 478 funcionários são 44% dos 1077 trabalhadores que em Maio deste ano continuavam na mobilidade especial disponíveis para reiniciar funções num qualquer serviço público. O facto de continuarem sem trabalhar ilustra bem o fracasso da mobilidade especial.

Relançada em 2006, no primeiro Governo de José Sócrates, a mobilidade especial tinha como principal objectivo resolver o problema da distribuição dos recursos humanos no Estado. A ideia era transferir pessoas de serviços extintos ou com excesso de pessoal para outros com carência de recursos, na sequência do Programa de Reestruturação da Administração Central (PRACE).

Contas feitas, o objectivo ficou muito aquém do que se esperava. Dos 3925 funcionários públicos que passaram pela mobilidade especial nos últimos cinco anos, só 721 (18%) foram recolocados. Os restantes, que são a maioria, deixaram o Estado. Pediram licença extraordinária (1022), licença sem vencimento (220) ou aposentaram-se (801). E depois há os que continuam "emprateleirados", a receber metade do salário e à espera que os chamem para trabalhar ou de atingir a idade legal da reforma.

Em alguns casos, o lugar que deixaram vago nunca foi ocupado. Sentem-se abandonados pelo Estado. Não estão desempregados, mas também não têm trabalho. Continuam a ser funcionários públicos, mas sem serviço. É esta contradição que os consome.

Sentada no Café Arcada, na Praça do Giraldo, em Évora, Maria Manuel desfia a história do seu percurso profissional até ao dia fatídico que lhe alterou as rotinas e lhe causou um rombo significativo no orçamento.

Trabalhava na zona agrária de Évora, no serviço de contra-ordenações, e não tem dúvidas de que foi vítima, tal como os restantes trabalhadores que na altura foram enviados para a mobilidade especial, de um processo injusto.

A 12 ou 13 de Abril de 2007 estava sentada à secretária quando recebeu das mãos do chefe uma carta a dizer que não teria lugar na nova orgânica do serviço. Há muito que se falava na reestruturação, mas não esperava ser uma das escolhidas.

A avaliação de desempenho ditou-lhe o destino, mas Maria diz que isso não passou de uma farsa: "Foi tudo trabalhado nos bastidores. Foi um processo de má-fé por parte dos dirigentes anteriores, que por questões financeiras e políticas decidiram enviar-nos para a mobilidade especial". Saiu em Agosto. "Revolta" é a palavra que melhor descreve o que sentiu naquele dia: "O serviço encostou-nos. Passaram-nos um atestado de incompetência, sem sermos incompetentes".

Os dias passaram a ser mais compridos, "deixa-se de ter responsabilidade, mas adaptamo-nos às situações". Fez vários cursos, tentou ser reintegrada noutros serviços, mas a resposta foi sempre negativa. Ainda teve uma proposta para se mudar para Setúbal, mas, nascida e criada em Évora, abandonar a cidade sempre esteve fora de questão.

Não teve depressões. "Mas uma pessoa sente-se posta em causa perante os demais". E nos dias em que tem mais tempo para pensar no que lhe aconteceu, a revolta instala-se.Tem informação de que, entretanto, será reintegrada nos serviços do Ministério da Agricultura de Évora.

A correr está ainda a acção que interpôs, através do sindicato, em Novembro de 2007. Ao longo destes cinco anos a esperança residiu no Tribunal Administrativo de Lisboa. Continua à espera da sentença. Tem esperança que vá no mesmo sentido das outras que já foram decididas por outros tribunais e que obrigaram o Ministério da Agricultura a reintegrar os trabalhadores. No Norte do país grande parte das pessoas acabou por voltar aos serviços de onde tinha saído.

Também Maria José e David Antunes, de 50 e 59 anos, respectivamente, gostariam que a justiça fosse mais célere e lhes acabassem de uma vez por todas com a angústia em que vivem há cinco anos. Tal como Maria Manuel, têm um processo em tribunal a contestar a colocação em mobilidade especial.

O casal foi durante 20 anos auxiliar agrícola na Quinta da Veiga, em Montalegre. Até 2007, quando ficaram a saber que ambos iriam para a rua. Maria José "não encontra palavras" que expliquem o que lhes aconteceu: "Como é que se deita assim as pessoas abaixo? É a mesma coisa que dizerem-nos: "Vós não prestais para nada"."

Com três filhas em casa e com um corte no salário de 33%, Maria José e o marido deitaram as mãos à cabeça. Passados cinco anos, e com as reduções adicionais do salário em vigor desde Janeiro, marido e mulher recebem pouco mais de 800 euros todos os meses. Mais de metade vai para a prestação da casa e para a farmácia.

"Não foi só tirarem-nos o salário. Tiraram anos de vida à gente. Estou a viver os piores momentos da minha vida", desabafa pelo telefone a partir de Codessoso, uma aldeia do concelho de Montalegre.

Em cinco anos nunca receberam uma proposta de colocação nem de formação. "Não quiseram saber mais de nós para nada", lamenta.

Até Janeiro deste ano, os funcionários públicos em mobilidade tinham a hipótese de pedir licença extraordinária e deixar temporariamente o Estado. Recebiam 75% da subvenção paga na mobilidade especial que podiam acumular com um rendimento do trabalho no sector privado.

No caso de Maria José, a hipótese nunca se colocou. Um problema grave de saúde deixou-a fragilizada e sem capacidade para trabalhar. Além do mais, nunca perdeu a esperança de vir a ser chamada para outro serviço. Ela e o marido.

"O que mais condeno é que o Estado deita as pessoas fora, para depois deixar as terras ao abandono. Como é que Portugal pode ir para a frente?", questiona.

E admite mesmo a hipótese de vir a pedir uma rescisão amigável do Estado - uma medida que está em discussão com os sindicatos - "desde que não perdesse nada e se a proposta me agradasse".

São casos como este que preocupam os sindicatos e que os levam a opor-se à proposta de alargar a mobilidade especial às autarquias. José Abraão, dirigente do Sindicatos dos Trabalhadores da Administração Pública, lamenta que o Estado não saiba gerir os seus recursos. "Encostam-se à prateleira centenas de trabalhadores e contratam-se outros, com vínculos precários, para desenvolverem actividades que podiam ser asseguradas pelo pessoal na mobilidade", nota.

José Manuel Lucas, de 63 anos, técnico de informática que trabalhou 15 anos na Direcção Regional de Agricultura do Alentejo, também está preocupado com o futuro. Não com o dele, que está à beira da reforma, mas com o dos outros funcionários públicos que possam vir a ser integrados na mobilidade especial, depois de se conhecer o resultado do programa de reestruturação do Estado (PREMAC) lançado pelo Governo de Passos Coelho.

Tal como Maria Manuel e Maria José, foi dos primeiros a inaugurar o quadro de excedentários em 2001. Também estava a trabalhar, quando em cima da secretária lhe foi deixada uma carta que basicamente dizia que não teria lugar na nova orgânica do serviço.

"Senti o processo como uma maldade muito grande. Fomos considerados lixo. Os critérios não foram objectivos nem transparentes na determinação dos postos de trabalho que ficaram", relata.

A conversa decorre com música de intervenção e palavras de ordem em fundo. Lucas, como o tratam os colegas, veio de Faro até Lisboa participar numa manifestação à porta do Ministério da Educação.

Depois de ter saído do serviço, agarrou-se ao sindicato. Já antes exercia funções sindicais, mas a mobilidade especial permitiu-lhe dedicar-se a tempo inteiro ao sindicalismo.

Não tem dívidas, por isso o corte salarial não lhe tirou o sono, nem lhe causou angústias. Vive com dois filhos e a mulher, funcionária administrativa, numa casa alugada.

José não desarma no optimismo: "Eu sinto o mesmo que as outras pessoas, mas temos de seguir em frente!".

Há quem nunca mais tenha tido coragem de voltar ao serviço. Ele não tem problemas nenhuns em ir lá fazer trabalho sindical. "Quem tem que baixar os olhos não somos nós, são eles, os que se transformaram em carrascos!", justifica.

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