Caso célebre do casal Damásio foi estudado por outra equipa

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John Van Horn/Universidade da Califórnia

Quando uma barra de ferro lhe atravessou a cabeça, Phineas Gage sobreviveu. Mas nunca mais foi o mesmo. As suas lesões cerebrais foram analisadas pela primeira vez por António e Hanna Damásio. Novas imagens completam esses resultados

Em 1848, Phineas Gage era um jovem encarregado de obras dos caminhos-de-ferro norte-americanos. O seu trabalho consistia em nivelar o terreno à medida que as obras de colocação de carris no Estado do Vermont avançavam. Quando encontravam uma rocha que era preciso partir, os operários faziam um buraco na pedra, enchiam-no de pólvora, punham areia por cima e, a seguir, Gage calcava a areia e a pólvora com a ajuda de uma barra de ferro, para em seguida se proceder à explosão controlada da rocha. Mas, no dia 13 de Setembro, Gage distraiu-se e, antes de o seu ajudante ter tempo de deitar areia por cima da pólvora... calcou directamente o explosivo com a barra - que literalmente lhe explodiu na cara. A barra de ferro, de ponta aguçada e com três centímetros de diâmetro e mais de um metro de comprimento, atravessou-lhe o rosto, o crânio e o cérebro, saindo disparada pelo alto da sua cabeça. Seria encontrada mais tarde, dizem os relatos da época, "coberta de sangue e de matéria cerebral".

Se Gage tivesse morrido logo, tratar-se-ia apenas de mais um triste acidente como tanto outros, do qual já ninguém se lembraria. Mas Gage não só não morreu, como conseguiu pôr-se de pé e falar com os seus colegas quase logo a seguir ao acidente. E até à sua morte, uns 12 anos mais tarde, conservou intactas a memória, a inteligência, a fala, as capacidades motoras e de aprendizagem.

Contudo, os que conheceram este jovem de 25 anos antes e depois do acidente foram unânimes: "Gage já não era Gage." Ele, que fora sempre uma pessoa responsável e muito bem-educada, passou a dar sinais da mais total falta de sentido das responsabilidades. Deixou de ser capaz de cumprir prazos e acabou por ser despedido. E passou a ser insolente e caprichoso, enchendo o seu discurso de palavrões, ignorando por completo as convenções sociais que até então tinha respeitado tanto. Nunca tornaria a fazer uma vida totalmente independente.

O seu médico, John Harlow, para quem o que tinha acontecido a Gage era que "o equilíbrio entre as suas faculdades intelectuais e as suas propensões animais" tinha sido destruído, só soube da morte dele anos mais tarde. Mas, consciente de que o caso era extraordinário, conseguiu obter autorização da família de Gage para exumar o crânio do seu antigo doente. Este encontra-se hoje - assim como a fatídica barra de ferro (junto da qual Gage tinha sido enterrado) - no Museu Warren de Anatomia Médica da Universidade de Harvard, em Boston.

Mais de 160 anos após o terrível acidente, graças às mais sofisticadas técnicas de visualização digital do cérebro humano, a equipa de Jack van Horn, da Universidade da Califórnia, revisitou o caso e conseguiu determinar, com uma precisão sem precedente, a extensão e a natureza das lesões cerebrais de Gage. Os resultados foram publicados na revista online de acesso livre PLoS ONE.

Primeira reconstituição

Em 1878, o fisiologista britânico David Ferrier já tinha avançado a ideia de que a lesão de Gage estava provavelmente situada no córtex pré-frontal, a camada de matéria cinzenta que cobre a extremidade frontal do cérebro e que se sabe hoje estar implicada no controlo das emoções, da memória, da aprendizagem e do comportamento social.

Mais de um século depois, em 1994, os neurologistas portugueses António e Hanna Damásio, na altura a trabalhar na Universidade de Iowa, foram os primeiros a determinar, graças às então novíssimas técnicas de visualização do cérebro, a localização mais provável da lesão de Gage, radiografando o seu crânio e medindo com grande precisão a sua forma interior e exterior. A seguir, utilizaram um modelo 3D já existente de um crânio humano "médio" e deformaram esta imagem computadorizada de maneira a adaptá-la às dimensões do crânio de Gage.

O casal Damásio, que na altura publicou os seus resultados na revista Science, pôde assim determinar as possíveis trajectórias da barra de ferro dentro do cérebro de Gage, excluindo aquelas que não eram compatíveis com a realidade. A trajectória finalmente escolhida como a mais provável confirmou que Gage tinha muito provavelmente uma lesão pré-frontal. E concluíam, a partir deste caso histórico e de vários casos de doentes por eles estudados, que "as lesões envolvidas (...) causavam um défice nas tomadas de decisão racionais e no processamento das emoções" - a base da teoria da importância das emoções na racionalidade humana, desenvolvida por Damásio no seu célebre primeiro livro, publicado nesse mesmo ano, O Erro de Descartes.

Van Horn e os seus colegas tornaram agora a mapear as lesões do cérebro de Gage graças a tecnologias de visualização digital ainda mais avançadas, desenvolvidas desde então e que permitem nomeadamente "ver" as fibras nervosas (a matéria branca) que ligam entre si as diversas regiões do cérebro - o chamado "conectoma" humano. Diga-se porém que estes cientistas não partiram do crânio de Gage, porque o seu mau estado de conservação não o permitia, mas de dados de tomografia computadorizada do crânio realizadas em 2001 e que, ironicamente, foram entretanto extraviadas e agora reencontradas.

Os investigadores reconstituíram desta forma um modelo de alta resolução do crânio de Gage, determinaram a trajectória exacta da barra de ferro e utilizaram imagens digitais do cérebro de 110 homens com a mesma idade que Gage (e dextros, tal como ele) para obter uma imagem compósita que a seguir posicionaram dentro do modelo do crânio de Gage, partindo do princípio de que a anatomia do seu cérebro estava inicialmente "na média".

"O que descobrimos", diz Van Horn num comunicado da sua universidade, "foi uma perda significativa da matéria branca que liga as regiões frontais esquerdas ao resto do cérebro. Isto poderá ter tido um impacto na mudança de personalidade do Sr. Gage ainda maior do que meramente as lesões do córtex frontal". Os cientistas constataram que, uma vez que cerca de 4% do córtex cerebral (matéria cinzenta) foi danificado, a barra de ferro provocou lesões extensas, um pouco por todo o seu cérebro, em mais de 10% da matéria branca total.

Matérias branca e cinzenta

Estes resultados poderão permitir perceber melhor certas doenças cerebrais causadas por lesões deste tipo, afirmam os investigadores. "A extensa perda de conectividade ao nível da matéria branca, que afecta ambos os hemisférios cerebrais, combinada com os estragos directos causados pela barra de ferro, que foram limitados ao hemisfério esquerdo, evoca as lesões de doentes actuais que sofreram traumatismos cerebrais", frisa ainda Van Horn. "E é também análoga a certas formas de doenças degenerativas como a doença de Alzheimer ou a demência frontotemporal, nas quais os circuitos neuronais dos lobos frontais estão degradados, algo que se sabe dar origem a profundas mudanças de comportamento."

Contactados pelo PÚBLICO, António e Hanna Damásio - hoje a liderar, respectivamente, o Instituto do Cérebro e da Criatividade e o Centro de Imagiologia de Neurociência Cognitiva, ambos na Universidade da Califórnia do Sul - salientam: "Os resultados de Van Horn baseiam-se precisamente na mesma abordagem que utilizámos, como eles próprios reconhecem, mas focam-se na conectividade ao nível de matéria branca, que pode hoje ser estudada com as recentes técnicas de visualização por [ressonância magnética de] difusão. Nesse sentido, estes resultados vêm completar o nosso estudo [de 1994], embora em todos os outros aspectos não façam mais do que simplesmente confirmar e repetir esse estudo."

Já no seu artigo na Science, sublinham ainda estes cientistas, a relevância dos estragos causados na matéria branca do cérebro de Gage pela passagem da barra de ferro não eram descurados. "Ao longo do artigo de 1994, mencionávamos a matéria branca, mas tivemos obviamente de ser prudentes quanto a falar em circuitos específicos, uma vez que as técnicas de há 18 anos não nos permitiam fazê-lo de forma fiável." Na sua opinião, "o que mudou [nestes 18 anos] foi a nossa capacidade de pormenorizar algumas dessas ligações e de ver como a sua organização hierárquica contribui globalmente para as funções cognitivas".

Muitos especialistas consideram hoje doenças como o autismo ou a esquizofrenia como perturbações da conectividade. Mas António e Hanna Damásio mostram-se críticos do que dizem ser uma tendência a "sobrevalorizar a conectividade [cerebral] enquanto explicação da função cerebral". Para eles, "é evidente que as regiões corticais requerem ligações nos dois sentidos para produzir uma função, seja ela qual for", algo que "é sabido desde o século XIX", Mas, "com a actual ênfase técnica que está a ser posta na conectividade subcortical, corre-se o grande risco de dar ao leitor desprevenido a impressão de que essas ligações podem operar independentemente dos módulos corticais - o que é falso - e de que qualquer região do córtex tem as mesmas capacidades do que qualquer outra região do córtex, o que é claramente incorrecto".

Seja como for, frisam ainda os Damásio, os resultados de Van Horn "não alteram em nada as nossas interpretações, tanto em relação a Gage como aos outros doentes com lesões nos lobos frontais, no que diz respeito às bases da racionalidade e das emoções".

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